Gibson
da Costa
[Ensaio
apresentado no FIE 2011.]
RESUMO:
Considerando
nossas experiências no ensino de Língua, Cultura e História
Brasileiras a jovens brasileiros na cidade de Nova York, refletimos
neste ensaio acerca do papel da memória, enquanto representação
seletiva do passado, na construção duma identidade étnica e
nacional de jovens brasileiros migrantes e transnacionais no ensino
secundário. Para isso, optamos pelo exercício da própria memória
na escrita deste texto, relatando as experiências que nos levaram a
desenvolver nossa compreensão da construção identitária étnica e
nacional, esclarecendo, ao mesmo tempo, noções de identificação
étnica e (trans)nacional, além de esclarecer a noção que chamamos
de “tradição da saudade”.
PALAVRAS-CHAVE:
tradição
da saudade; identidade; memória; ensino de História.
1. Introdução
Neste ensaio,
refletiremos acerca de nossa experiência no ensino de jovens
estudantes brasileiros transnacionais e/ou migrados no ensino
secundário na cidade de Nova York. As reflexões aqui presentes
baseiam-se em nossas próprias experiências como brasileiro
transnacional e professor de alunos imigrantes e transnacionais.
Nossa discussão centra-se no papel da memória enquanto uma
representação seletiva do passado e enquanto eixo na (re)construção
e (re)interpretação de identidades étnicas e nacionais.
Para
nossa reflexão acerca desse papel desempenhado pela memória,
fazemos uso do relato de nossas próprias experiências, emoldurado
pelas perspectivas da antropóloga Loretta Baldassar acerca da
construção da identidade transnacional, e das perspectivas das
psicólogas Karmela Liebkind e Jean Phinney sobre a construção da
identidade étnica e nacional de adolescentes. A linha condutora de
nossa reflexão é a de que a construção de identidades
transnacionais se dá por meio da experiência daquilo que aqui
chamamos de tradição
da saudade.
Por este texto ser
uma reflexão acerca da memória enquanto meio de construção
identitária, escolhemos fazer uso dela mesma para a elaboração de
nossas ideias. Sendo assim, é através de uma narração de nossas
próprias lembranças das experiências que tivemos com um grupo
específico de alunos que esperamos refletir sobre o tema que aqui
discutimos.
2. Definições
iniciais
Muitas vezes, ao
refletirmos acerca da relação entre o ensino de História e o
processo de construção identitária no ambiente escolar, podemos
não avançar além da noção já bem estabelecida deste processo
como referindo-se apenas à identidade nacional. Essa perspectiva de
“identidade” como uma referência à nacionalidade está
frequentemente limitada pela concepção dominante na sociedade como
um todo, e na escola em particular, da unicidade da identidade étnica
brasileira.
O mito da unicidade étnica parece servir como pano de fundo para o que poderíamos chamar aqui de tradição memorial da escola brasileira – a memória social como construída na escola. Assim, nossa tradição memorial escolar ensina que o “povo brasileiro” foi formado por apenas três grupos distintos (portugueses, índios, negros); fala uma única língua (a “língua portuguesa”); professa apenas uma religião (o cristianismo); e está unido por traços culturais comuns (aqueles característicos dos grandes centros urbanos de influência). Como eixo central dessa concepção identitária encontra-se, além das características citadas, a visão dos laços de territorialidade – ou seja, é brasileiro aquele que nasceu em território brasileiro.
Pensamos em memória aqui como um termo detentor de dois sentidos básicos: [1] como uma capacidade peculiar à espécie humana de processar – biológica, social, cultural e historicamente – nossa percepção do mundo (BOCK et al., 2009, p. 157); e, [2] como uma representação seletiva do passado por parte dum indivíduo (ou comunidade) contextualizado num ambiente familiar, social, nacional (ROUSSO, 1992). O segundo sentido é o que mais interessa-nos em nossa presente reflexão.
A memória, enquanto representação seletiva do passado, é elemento constituinte do processo de formação da identidade (étnica ou nacional) dum indivíduo. Ela desempenha um papel (quiçá primordial) nos laços de sentido construídos entre um indivíduo e sua comunidade. Esses laços, cujas representações poderiam ser encontradas em experiências objetivas ou subjetivas, são o que chamamos aqui de identidade.
Faz-se necessário, ainda, definirmos o sentido que queremos dar à ideia de etnicidade que nos acompanhará no decurso de nossa reflexão. Identidade étnica refere-se ao sentimento que tem um indivíduo de pertencer a um grupo étnico particular (LIEBKIND, 1992, 2001; PHINNEY, 1990). A identidade étnica é geralmente vista como aglutinadora de vários aspectos, como auto-identificação, sentimentos de pertencimento e comprometimento a um grupo, valores comuns, e atitudes para com o próprio grupo étnico. Aqui, usaremos os termos etnia, etnicidade, grupo étnico, ou identidade étnica para nos referirmos a subgrupos dentro de um contexto maior (por exemplo, nação) que reclamam uma origem comum e partilham de um ou mais dos seguintes elementos: cultura, religião, língua, parentesco, e lugar de origem. É importante estabelecer que a diferença entre identidade étnica e identidade nacional, aqui, é que a segunda consiste numa construção muito mais complexa, envolvendo sentimentos de pertencimento e atitudes para com a sociedade como um todo, extrapolando o círculo étnico com o qual se identifica mais estreitamente o indivíduo (PHINNEY, DEVICH-NAVARRO, 1997).
Considerando
a noção que adotamos para a ideia de etnicidade, podemos afirmar
que há uma multiplicidade étnica na sociedade brasileira que, de
forma geral, não é prevista pela tradição memorial da escola,
especialmente no ensino de História. Ou seja, os brasileiros sobre
os quais fala a História ensinada na escola não são aqueles de
outras origens que não aquelas do tradicional racialismo tripartite;
não são os brasileiros que falam outras línguas maternas que não
a que se chama de língua
portuguesa
(populações indígenas, populações de fronteiras, comunidades de
imigrantes no Brasil, e os brasileiros emigrados e transnacionais);
não são os adeptos de outras religiões minoritárias
(especialmente o judaísmo, o islã, e as tradições orientais
trazidas por imigrantes asiáticos) praticadas no Brasil do passado
ou de hoje; não são os brasileiros cujo contexto cultural não se
encaixa nos moldes estereotipados duma suposta “brasilidade”; e
muito menos, são os brasileiros emigrados e transnacionais, cuja
participação na identidade nacional é ignorada pela citada
tradição memorial escolar, apesar de ser reconhecida pela tradição
jurídica brasileira1.
Esse esquecimento duma parcela dos brasileiros na tradição memorial
escolar torna-se visível mais claramente nos livros didáticos
usados para o ensino histórico; livros esses, cuja narrativa exclui
aqueles brasileiros supracitados.
O adjetivo transnacional refere-se, aqui, especificamente aos brasileiros nascidos no exterior, ou detentores de cidadania do país receptor (se brasileiros emigrados), e que ainda mantêm laços identitários com sua cultura de origem, ao mesmo tempo em que também se identificam como nacionais do país onde nasceram ou onde se naturalizaram.
3. A tradição da
saudade na construção identitária transnacional
Aqui, refletiremos
acerca das relações possíveis entre a memória (como representação
seletiva do passado), a experiência transnacional e o ensino escolar
de História como instrumento na construção de uma identidade
transnacional de jovens brasileiros emigrados ou filhos de
brasileiros na região metropolitana de Nova York, Estados Unidos. Os
jovens aos quais fazemos menção neste ensaio, frequentaram o ensino
secundário em escolas públicas de Nova York nos anos letivos de
2004 e 2005, tendo participado de aulas de “Língua, Cultura e
História Brasileiras” oferecidas como um programa opcional para
estudantes de high
school2.
Os alunos matriculados nesse programa somavam um total de quinze
jovens, sendo nove moças e seis rapazes: três dessas moças e dois
desses rapazes, nasceram nos Estados Unidos –
sendo filhos de pais brasileiros emigrados –,
enquanto dez deles –
seis
moças e quatro rapazes –
nasceram no Brasil, tendo chegado aos Estados Unidos antes dos dez
anos de idade.
Participamos como colaborador nesse projeto de ensino de “Língua, Cultura e História Brasileiras”, que surgira com patrocínio de uma comunidade religiosa com grande concentração de brasileiros e uma high school, em Nova York, e que foi desenvolvido durante os anos letivos de 2004 e 2005. As experiências dos participantes naquele programa (professores e estudantes) auxiliaram as citadas comunidade religiosa e escola a refletirem acerca das necessidades dos jovens identificados como brasileiros em seu meio, tendo transformado algumas de suas conclusões em solicitações às autoridades municipais.
Nossa experiência naquele programa de educação transnacional envolveu um estudo comparativo e discussão sobre a imigração nos Estados Unidos e no Brasil. Durante as discussões sobre o tema, frequentemente veio à tona a maneira como a questão da identidade nacional era encarada por brasileiros e por norte-americanos. Ao término daquela unidade temática, requisitamos dos alunos um texto dissertativo sobre a experiência migratória. Todos os textos versaram ao redor de dois temas principais: o que era ser brasileiro em uma terra estrangeira, e o que era ser um cidadão americano de origem brasileira numa cidade com tanta diversidade cultural quanto Nova York.
Os textos escritos pelos alunos daquele programa, assim como as discussões que frequentemente mantínhamos em classe, faziam um uso recorrente da palavra inglesa 'home' (lar/casa, em português). Além disso, era também recorrente a comparação do 'aqui' versus 'lá' – com o sentido geográfico sendo, muitas vezes, alterado: o 'aqui' podendo significar os Estados Unidos ou o Brasil, dependendo do histórico pessoal de cada aluno e do aspecto histórico-cultural que estava em discussão, e vice versa.
As experiências que tivemos, em sala, com aqueles alunos parece-nos apontar que a ideia de nacionalidade está sempre ligada ao sentimento de “lar”. Enquanto a noção de identidade étnica não requer necessariamente uma memória de localização geográfica, a identidade nacional parece sempre exigir a dicotomia 'aqui' versus 'lá', criando uma divisão externa para limitar-se identitariamente. A construção dessa dicotomia já havia sido apontada como uma marca da experiência migratória pela antropóloga Loretta Baldassar (1997, p. 70), quando escreveu que “a migração não consiste simplesmente na partida e no estabelecimento de um lar em um novo país. Consiste também nos laços com a antiga terra natal e na influência dessa ligação no desenvolvimento da identidade étnica na nova pátria”.
Na experiência de muitos transnacionais, a migração carrega em si um elemento de trauma, causado pelo abandono do que antes era familiar na antiga pátria. A memória exerce para esses uma função de ligação com os lugares e pessoas que ficaram para trás, e, assim, pode ser dolorosa, já que é uma lembrança do que está ausente no presente; ao mesmo tempo em que exerce uma função enraizadora numa identidade cultural íntima, ligada a uma história pessoal e a um senso de pertença em meio à mudança. A essa experiência específica da memória daremos aqui o nome de tradição da saudade.
Pessoalmente, experienciamos essa tradição da saudade em diferentes direções em nossas vivências migratórias, assim como também testemunhamos a experiência de jovens que passaram por vivências semelhantes. Em meio a essa crise enfrentada pelo migrante, qualquer ligação com a cultura de origem pode servir de suporte para a construção da nova identidade, que poderá ser repensada e reconstruída muitas vezes, dependendo de como se configure(m) a(s) experiência(s) migratória(s) do indivíduo. Algumas dessas ligações, na experiência de nossos alunos em Nova York, eram as próprias aulas de “Língua, Cultura e História Brasileiras”, o envolvimento com a comunidade brasileira local, uma ligação com as tradições religiosas de origem, e um contato com a cultura brasileira produzida nos Estados Unidos e/ou no Brasil.
Há jovens brasileiros, entretanto, que passam por experiências migratórias mais complexas. Como exemplo, poderíamos citar um de nossos alunos no programa, que aqui identificaremos pela inicial de seu primeiro nome – “A” –, que apesar de haver nascido no Brasil, tinha pai norte-americano e mãe uruguaia. Além dessa transnacionalidade familiar, sua família era judia ortodoxa, o que acrescentava um elemento a mais na complexidade étnica que o circundava. “A” viveu no Brasil até os quatro anos de idade, quando mudou-se para Israel – tendo lá vivido até os nove –, e posteriormente mudou-se para os Estados Unidos. Ou seja, para ele, a construção duma identidade nacional não era algo fácil, já que possuía ligações a diferentes lugares, e falava diferentes línguas. Além de todas essas marcas identitárias, “A” vinha de uma família que enfatizava muito fortemente sua etnia judaica, o que o distanciava ainda mais da concepção de unicidade étnica brasileira. Sua família, seus amigos, e mesmo outros alunos do programa, não o viam como brasileiro, apesar de ele perceber-se plenamente como tal, o que aparentemente confirma a sugestão de Phinney (1990) de que a auto-identificação étnica de um indivíduo pode ser diferente daquela percebida por outros.
Que relação poderia ter o ensino de História com a construção duma identidade transnacional naqueles estudantes, levando-se em consideração o fato de o programa ter tentado criar diálogos entre as histórias brasileira e norte-americana para aqueles jovens migrantes? Há alguma vantagem num empreendimento como esse para a criação ou fortalecimento de laços culturais entre jovens brasileiros emigrados e seu país de origem? Essas questões se repetiram durante todo o nosso envolvimento com o programa, já que alguns professores acreditavam que, para os jovens migrantes, o essencial seria a integração à cultura na qual estavam agora inseridos. Para um outro grupo, o contato com a cultura nacional de origem – o que inclui uma apreciação pela língua e história, por exemplo – contribuiria para que os estudantes pudessem lidar melhor com sua experiência da tradição da saudade – optando pela perspectiva assumida por Baldassar (1997, p. 70), como explicada anteriormente.
Nossas próprias experiências transnacionais, e o processo de construção identitária fluida que delas resultou, forçou-nos a enxergar a escola como uma experiência essencial na construção de pontes de ligação não apenas à cultura na qual tentam se inserir os imigrantes, mas também àquilo que deixam alhures. Sendo assim, nosso envolvimento anterior com o ensino bilingue de alunos transnacionais, e posteriormente com aquele programa destinado especificamente a jovens estudantes brasileiros baseava-se na concepção defendida por Loretta Baldasser de que a ligação com a cultura de origem influencia (positivamente, em nossa opinião) o desenvolvimento da nova identidade étnica ou nacional.
4. A tradição da
saudade e a (re)construção e (re)interpretação de representações
memoriais
Como a memória tem
sua base referencial no passado, ela é flexível, enquanto material
para a construção de interpretações do passado e do presente.
“Memórias, imagens, identidades construídas são sempre
incompletas porque correspondem a uma multiplicidade de experiências
vividas por indivíduos e grupos sociais que não se encontram
parados no tempo, mas em contínua transformação” (SANTOS, 1998,
p. 11). A memória é, assim, inacabada.
Essa fluidez memorial desempenha, como consequência, um papel marcante na compreensão que o migrante tem de sua própria identidade nacional, enquanto estando geográfica e temporalmente alhures. Sua interpretação da memória identitária nacional – que não se baseia necessariamente em experiências objetivas pessoais – é influenciada e, até certo ponto, moldada pelas experiências do presente, quando pensamos em migrados que estejam no país receptor há muito tempo. Para transnacionais, a interpretação dessa memória identitária nacional depende, frequentemente, daquela assumida por sua própria família e sua comunidade migrante, já que essas representam a ligação mais imediata que possuem com a cultura de origem da família.
Nesse cenário de construção de representações memoriais e de (re)interpretações das mesmas, destaca-se o ensino direcionado a determinados grupos étnicos em países com grande movimentação imigratória, como os Estados Unidos. Esse tipo de ensino, que, em muitos casos, resume-se a um programa de aulas bilingues, muitas vezes funciona como locus de transição para uma assimilação identitária em jovens migrantes, ao mesmo tempo em que funciona como um território de tensão identitária para jovens transnacionais (CUMMINS, 1989; PHINNEY, DEVICH-NAVARRO, 1997).
Em nossa experiência no programa de “Língua, Cultura e História Brasileiras” em Nova York pudemos presenciar o impacto causado em nossos jovens alunos o fato de explorarem aquele território de tensão. Para a maioria deles, aquela era a primeira oportunidade de encararem-se como estrangeiros de forma mais ampla, já que, em seus relatos, na escola eram sempre apontados como latinos e nunca como especificamente brasileiros; seus amigos não-hispanos não compreendiam as diferenças étnicas/nacionais entre brasileiros e hispanos, assim como também não compreendiam as diferenças entre os vários grupos étnicos/nacionais hispânicos. Por outro lado, para seus amigos hispanos aqueles jovens brasileiros não eram parte plena de seu grupo étnico, especialmente se não falassem espanhol – ou, mais propriamente, no caso específico da comunidade onde ensinávamos, spanglish3 –, o que, para muitos deles, funcionava como uma pressão a mais em sua construção identitária étnica/nacional: alguns sofriam a pressão no lar para serem mais brasileiros, a pressão dos amigos para se encaixarem em algum grupo aceitável, e a pressão da sociedade como um todo para serem “americanos” (o que, grosso modo, significava falarem inglês fluentemente e se portarem de maneira aceitável para os padrões culturais estadunidenses).
Toda essa pressão sofrida por aqueles jovens – pressão essa que sempre testemunháramos, enquanto ensinávamos a alunos transnacionais, mas que parecia ser muito maior no caso de nossos outros alunos em situação ilegal no país, e que, por essa razão, não se encaixariam em nossa presente noção de transnacionalidade – parecia só reforçar a noção de nossos colegas professores que se opunham àquela forma de ensino. Em muitas ocasiões, ouvimos que aquele tipo de programa era um desperdício e um retrocesso, já que (para esses colegas) o papel da escola era absorver esses alunos e fazê-los juntarem-se ao mainstream da sociedade norte-americana, e não o de reforçar as diferenças. Em alguns momentos anteriores àquele envolvimento nesse programa, observando o desempenho de grupos de alunos em disciplinas como Língua Inglesa e História dos Estados Unidos, receamos que o ensino bilingue fosse realmente um problema em termos de levá-los a uma integração com a sociedade na qual viviam agora. Entretanto, o programa de “Língua, Cultura e História Brasileiras” era uma tentativa de sairmos daquele velho formato de ensino bilingue, até aquele ponto tão característico de grandes centros migratórios nos Estados Unidos.
Em nossas discussões em sala, tínhamos a oportunidade de tratar o Brasil a partir de diferentes temas como o processo de colonização, a escravidão, a imigração, a industrialização, os problemas urbanos, o êxodo rural, a democracia, a violência urbana, as desigualdades sociais, e as questões ambientais – dando especial ênfase à vida no Brasil dos dias atuais. Em nossas aulas, usávamos livros de ficção e não-ficção, recortes de jornais, artigos de revistas, filmes, cenas de telenovelas e comerciais de televisão, fotografias, cartões postais, música, e outros materiais produzidos no Brasil. Além disso, usávamos também materiais produzidos nos próprios Estados Unidos, como referências em livros didáticos e reportagens de televisão, além de artigos na imprensa – e a partir disso, discutíamos a maneira como o Brasil era retratado em seu próprio território e no exterior. Os alunos visitavam atividades culturais da comunidade brasileira, e recebiam a visita de brasileiros envolvidos com a comunidade brasileira local.
A resposta dada pelos alunos às provocações causadas pelo que líamos, assistíamos, ouvíamos, visitávamos e posteriormente discutíamos em classe era suficientemente convincente para que pudéssemos afirmar que um trabalho como aquele, mesmo que não tivesse uma aparente importância acadêmica, colaborava na (re)construção e (re)interpretação dum lado identitário que, para alguns de nossos alunos, estava esquecido em decorrência da distância e tensão do viver num confuso território de múltiplas identidades que tinham a necessidade de serem manifestas.
A mobilização das competências não apenas cognitivas, como também emocionais, causada por aquele aprendizado construído em conjunto, faz-nos lembrar das palavras do filósofo francês, que escreveu: “O movimento, por sua vez, implica uma pluralidade de centros, uma sobreposição de perspectivas, um emaranhado de pontos de vista, uma coexistência de momentos que essencialmente distorcem a representação” (DELEUZE, 1994, p. 67).
A representação do eu, como um indivíduo modelado por e construtor duma identidade étnica e nacional é um ser em movimento. Entretanto, esse movimento é ainda mais intensificado quando pensamos num indivíduo moldado pela experiência migratória, que expõe-se a diferentes “centros” de influência. Essa não é uma experiência que possa ser apenas especificada na individualidade, pois é característica da experiência migratória universal. Essa é aquela experiência que chamamos de tradição da saudade: a lembrança do que ficou para trás, a realidade manifesta na vivência do agora, e, como resultado da tensão criada por essas duas, uma identidade própria – que, enquanto se enraíza no presente, visita o passado para criar novos sentidos em meio a todas as mudanças. Essa experiência marcava-nos naquela turma: professor e alunos.
O Brasil que enxergávamos juntos, e o sentido de ser brasileiros que alcançávamos, não eram os mesmos que seriam enxergados e alcançados pelos brasileiros no Brasil. Além de serem brasileiros, aqueles jovens eram construtores habilidosos de pontes culturais e diplomáticas – e não apenas na comunidade escolar, mas também no seio de suas próprias famílias. Eram políticos que se engajavam na sobrevivência dentre diferentes momentos que “distorciam” sua representação memorial. Eram brasileiros emigrados e transnacionais que se arriscaram a descobrir um pedaço deles mesmos. E mais ainda, eram brasileiros esquecidos e ignorados pela tradição memorial do Brasil como um todo, e da escola brasileira em particular.
5. Considerações
finais
No mundo cada vez
mais globalizado no qual vivemos, onde há uma contínua movimentação
migratória ocasionada pelas mais diferentes razões, é importante
pensar acerca do sentido da identidade étnica e cultural. O Brasil,
que apesar de ter sido historicamente um importante pólo de
recebimento de imigrantes, é hoje um importante portão de
emigração, com brasileiros vivendo em todos os continentes do
globo.
O que esperamos dos pequenos brasileiros que hoje vivem no exterior e dos brasileiros que nascerão no exterior nas décadas adiante? Que tipo de apoio nossa tradição memorial oferecerá a esses brasileiros que, provavelmente, também experimentarão a confusão da tradição da saudade? Diremos algo sobre eles nos nossos livros didáticos? Ou continuaremos a ignorá-los, assim como ignoramos as comunidades de imigrantes em nosso país e os brasileiros da fronteira?
As responsabilidades que aguardam um país que deseja se destacar no cenário internacional, incluem o cuidado com todos os seus nacionais – estejam eles em seu território ou alhures. Acreditamos que disponibilizar meios para que os brasileiros que estão em outras terras possam aprender algo sobre sua herança – como sua língua, cultura e história –, é algo que deve fazer parte dos planos do Estado brasileiro. Enquanto isso não ocorre – e que provavelmente não ocorrerá brevemente, considerando que não se investe suficientemente nem na educação dos brasileiros que estão aqui mesmo –, esperamos que, pelo menos, os autores de livros didáticos se esforcem para reconhecer em seus textos os brasileiros sempre esquecidos: aqueles que comunicam-se nativamente em outras línguas que não o português, aqueles que nasceram e/ou cresceram em outros países ou nas áreas de fronteira entre o Brasil e seus vizinhos, e aqueles alheios ao estereótipo cultural atribuído aos nacionais do Brasil, estejam esses aqui mesmo ou em outras terras.
6.
Referências
bibliográficas
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Acesso em: 25 abr. 2011.
NOTAS
1 De
acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil,
Capítulo III, Artigo 12, há duas formas de aquisição da
nacionalidade brasileira: aquela chamada de forma primária ou
originária, que consiste na utilização dos critérios do jus
solis e/ou do jus sanguinis; e aquela chamada de forma
secundária ou adquirida, que consiste na naturalização. Quando
mencionamos aqui brasileiros nascidos no exterior, nos
referimos àqueles cujo direito à nacionalidade deriva dos
critérios do jus sanguinis, apesar de, não necessariamente,
já possuírem a cidadania brasileira, já que esta, de acordo com a
Constituição de 1988 (entre 1994 e 2007), dependia de sua fixação
em território nacional. A redação dada pela Emenda Constitucional
de número 54, de 2007, confere a nacionalidade brasileira também
aos nascidos no exterior, de pai ou mãe brasileira, que tenham sido
registrados em repartição brasileira competente (representações
consulares).
2 A High School corresponde ao Ensino Médio brasileiro.
3 Uma mistura informal de espanhol e inglês, especialmente na fala de jovens hispanos.
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