segunda-feira, 7 de novembro de 2016

ENEM, vestibular e exclusão: algumas questões políticas



Gibson da Costa

Todos os anos, escrevo demais sobre a I.T. (insanidade da testagem) que assola nossos sistemas de educação. Não direi mais (quase) nada novo; minha criatividade é limitada. Mas tenho algumas perguntas a fazer:

1) Não é engraçado que as provas do ENEM e de vestibulares se baseiem na premissa de que os estudantes do Ensino Médio brasileiro aprendam matemática, química, física e língua estrangeira – apenas para citar os exemplos mais óbvios – no nível exigido nesses testes, independentemente de seu local de origem, tipo de escola, etc? [Esqueçam, por um instante, a avaliação socioeconômica que também é levado em consideração quando da atribuição de notas.]

2) O que as instituições testadoras – o INEP/MEC, no caso do ENEM, ou as instituições superiores, no caso dos vestibulares – dizem aos, e acerca de, os candidatos quando os tratam como “bandidos”, revistando-os, coletando suas impressões digitais etc? Eles são estudantes ou ladrões e assassinos?

3) Ainda sobre a pergunta anterior, os que abraçam a ideologia brasilo-burguesa dirão que a segurança se justifica pelo fato de haver grupos que tentam tirar proveito das provas. Respondo com outra pergunta: Não seria melhor, então, encontrar outro caminho que não essas provas que não “provam” absolutamente nada de relevante, mas que funcionam muito bem como túnel excludente para aqueles que buscam a oportunidade de educação superior numa instituição pública?

4) Por que razão os estudantes deveriam pagar para se candidatarem ao ingresso numa instituição pública? Se a educação é um direito do cidadão, e a educação superior pública é mantida por meio dos impostos pagos por todos os cidadãos, não seria razoável esperar que os candidatos pudessem concorrer a um lugar sem pagar por isso? [Sim, conheço as justificativas quanto aos gastos administrativos referentes às provas – mas essas são impostas pelas instituições, logo, deveriam ser plenamente custeadas por elas próprias!]

5) Agora não mais uma pergunta, mas uma colocação direta: O Brasil tem uma tradição de seletividade excludente que parece se basear naquilo que chamei acima de “ideologia brasilo-burguesa” (a ideologia belicista de autodefesa característica da “burguesia” brasileira) – isto é, os grupos dominantes brasileiros sempre dificultaram o acesso à educação superior aos grupos menos favorecidos, o que historicamente tem se manifestado através dos dispositivos de testagem, e os preços cobrados para tomar parte nesses, utilizados pelas instituições educacionais. A seletividade é tamanha, e tão naturalizada, que mesmo profissionais altamente instruídos do campo educacional se manifestam contrariamente a qualquer crítica ao instituto da testagem – não percebendo que o mesmo contradiz aquilo que muitas vezes proclamam como sua visão política maior.

6) O ENEM, por exemplo, não é um instrumento de acesso equitativo à educação, principalmente porque não reflete a realidade da maioria das escolas públicas e mesmo privadas do Brasil. Ele é feito para reprovar. Quando se aplica uma prova como teste de admissão, espera-se que a mesma desempenhe um papel de filtragem. Como o ENEM serve como teste de admissão, sua missão é ser esse filtro, ou seja, é ser um agente de exclusão, de reprovação. As universidades não deveriam ser o lugar aonde vão aqueles que querem aprender? Ou deveriam ser apenas o gueto para os socioculturalmente afortunados ou, pelo menos, para os treinados pela indústria do pré-ENEM/pré-vestibular?

7) Aos que pensam que os estudantes frequentemente adentram o ensino superior despreparados, uma informação: de fato, as escolas brasileiras não preparam seus estudantes para pensarem independentemente ou escreverem com competência crítica; ela mal é capaz de ensinar os conteúdos formais (isso, infelizmente, algumas vezes também ocorre na educação superior). É aí que entra o papel da educação como instrumento de inclusão: a universidade tem de se adaptar às necessidades de seus estudantes, e não os excluir por não estarem “prontos” para ser parte do gueto intelectual. E é justamente essa exclusão que se patrocina com a tradicional testagem de admissão (ENEM ou vestibulares).

8) Eu não preciso dizer que há formas menos excludentes de oportunizar a educação superior ou profissional para os cidadãos do que o humilhante ritual da testagem que vemos nos períodos de ENEM ou vestibulares. Mas, novamente, esse não é o interesse dos grupos dominantes e daqueles que compram sua retórica. Afinal, o que seria das economias de certas instituições sem as taxas do ENEM, vestibular e concursos? O que seria do ganho dos empresários da indústria dos “Pré-”tudo e daquelas escolas que anunciam que seus alunos foram aprovados na admissão à instituição tal? O que seria daqueles professores que ensinam aulas particulares para os candidatos a esses exames?… Há inúmeros motivos para que esses exames não sejam eliminados ou repensados – incluindo a justificativa excludente de que não há vagas para todos os que gostariam de estudar em instituições públicas (ou não há bolsas para os que queiram fazê-lo em instituições privadas), e por isso mesmo deve haver um instrumento de seleção. A educação, então, trabalha como canal de exclusão, segue a trilha oposta à sua própria ideia. Quem ou o que nos salvará?

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Filosofia para as vítimas da antifilosofia



Gibson da Costa

A vida etérea das “redes sociais” é a vida do marketing pessoal. Estamos todos numa vitrine na qual nos vendemos por meio das aparências. É a vida das edições de imagens, que impulsionam a [auto]massagem do ego na disputa pelos “likes” da “Rede Social” de todas as redes sociais. É a vida das imagens com citações descontextualizadas e, muitas vezes, apócrifas. Agora, a disputa e o conflito giram em torno de outra forma de poder: o poder da imagem autoconstruída dum “eu-mercadoria”, projetado, desenhado, manipulado, escrito pelo gosto e preferências alheias.

A coisa triste dessa baratização da humanidade digitalizada é que facilmente nos tornamos vítimas de falsos “filósofos”. E a “Rede Social” está repleta desses. Eles oferecem uma autoajuda barata que se vende como “filosófica”; uma autoajuda que oferece a “cura” para o deficit de “leitura” de nossa cultura: criam inimigos e heróis – os inimigos, claro, são todos aqueles de quem discordam e que deles discordam; os heróis são eles próprios, cercados por acólitos que repetem os refrões bélicos típicos de fanáticos!

E eu que sempre pensara que a criticidade fosse a base da filosofia! O julgar pela aparência, em minha compreensão, se afasta muito de qualquer noção filosófica de criticidade. Ou, como bem escreveu Roger Scruton (autor com quem nem sempre concordo): “os seres racionais não somente olham para as coisas, eles olham dentro das coisas”. Assim, qualquer “filósofo” que se venda como fonte de verdade única, enquanto condena todo e qualquer autor como se fosse mentiroso e, por isso, inferior a si, pratica qualquer coisa, menos filosofia!

A filosofia é inseparável do pensamento crítico, e este – de acordo com Hannah Arendt – faz com que tornemos “o outro” presente por meio da imaginação. Essa criticidade (ou “esclarecimento”) nos faria conhecer e considerar os pontos de vista de outras pessoas. E, assim, poderíamos analisar um objeto por todos os lados, a partir de diferentes perspectivas.

Proclamar anátemas não é filosofar; é, antes, dogmatizar. E a dogmatização é um instrumento utilíssimo para o marketing pessoal daqueles que se vendem como “gurus” da “filosofia” das redes sociais. Como o que proclamam é “a verdade”, e todos os outros são mentirosos, seus discípulos os veem como “autoridade” intelectual, moral, espiritual etc. Assim, uma nova geração de fanáticos é criada. O questionamento e o filosofar são assaltados. Defensores da violência, da tortura, do autoritarismo e da hierarquia são exaltados como baluartes da “esperança” – uma esperança vazia que já decepcionou inúmeros no passado e não falhará em decepcionar os acólitos desses falsos “filósofos” do presente.

Você não tem de acreditar em nada do que escrevo. Não quero nem preciso de seguidores. Apenas convido você, que lê essas palavras, a olhar para “dentro das coisas”, a analisar qualquer coisa a partir de diferentes perspectivas. Em outras palavras, convido você a filosofar!



Referências

ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

SCRUTON, Roger. Bebo, logo existo: guia de um filósofo para o vinho. Tradução Cristina Cupertino. São Paulo: Octavo, 2011.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Conferência "Edutopia 2016"

5 de novembro, sábado, 9h00: apresentarei palestra sobre o Ensino-aprendizagem de História Baseado na Abordagem Inquisitiva (isto é, na pesquisa feita pelo estudante).

Local: Auditório da Biblioteca da Teachers College, Universidade de Columbia.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Língua na escola: uma explicação de meu trabalho a pais, estudantes e colegas



Gibson da Costa

Porque um estudante, recentemente, pediu-me uma breve explicação de minha “didática” – com o que imagino que quisesse se referir a minhas perspectivas linguísticas e pedagógicas –, exponho brevemente, aqui, as compreensões linguísticas que trago à minha prática pedagógica e, consequentemente, às minhas abordagens em sala de aula.

O ensino de língua na escola, em minha compreensão e prática, fundamenta-se sobre três eixos básicos: a leitura, a produção textual (escrita) e a análise linguística. Os três se inter-relacionam, já que não podem, isoladamente, “dar conta” do desempenho linguístico esperado duma pessoa escolarizada.

As expectativas sociais relacionados ao ensino de língua na escola geralmente podem se resumir em ajudar os estudantes a ler e escreverbem”. Pessoalmente, entretanto, prefiro pensar que meu objetivo, enquanto professor de língua – mas também enquanto professor das humanidades –, seja o de facilitar a ampliação de competências linguísticas e outras dos (e pelos) alunos.

Em minha compreensão, não cabe apenas ao professor de língua a facilitação da ampliação de competências linguísticas. Tudo o que fazemos no meio educacional é linguístico; todos – estudantes e professores dos mais diferentes componentes curriculares –, afinal, dependemos da língua (em qualquer de suas formas) para a realização do processo de ensino-aprendizagem. Assim, professores de todos os diferentes componentes curriculares (as “matérias” escolares) são, de alguma forma, também professores de língua – por mais que não possuam formação linguística específica, que não percebam isso ou que não sejam vistos como tais.

Também é importante deixar claro que não enxergo o trabalho do professor como sinônimo de um simples “ensinador” – se com o verbo “ensinar” refira-se a alguém que despeje seu conhecimento sobre mentes vazias e incompetentes. Não. O trabalho do professor, em minha compreensão, é o de facilitar a ampliação daquelas habilidades e competências que os estudantes trazem para a escola. Ou seja, aquilo que chamamos de “ensinonão consiste em “transmitir” ou “transferir” informações aos estudantes (como se os estudantes não passassem de antenas); mas, sim, em ajudar os estudantes a ampliarem o conhecimento que já têm do mundo – no caso específico da língua, a ampliarem sua compreensão, conhecimento e uso em função, por exemplo, dos diferentes contextos nos quais podem se encontrar em suas relações sociais.

O ensino linguístico – assim como o ensino de qualquer outro campo escolar – pode oferecer um caminho de libertação intelectual ou, contrariamente, um caminho de prisão a tradições que rejeitam todo o conjunto de conhecimentos que se têm desenvolvido nos últimos séculos. O ensino de língua, talvez mais do que qualquer outro campo, tem sido – muitas vezes – um território onde velhos preconceitos culturais e sociais insistem em permanecer no meio escolar. Assim, muitas vezes, o autoritarismo hierárquico se esconde por trás duma visão de “gramática” que rejeita, por exemplo, pesquisas linguísticas e psicológicas sobre o fenômeno linguístico; se esconde por trás duma visão do que seja “literatura” que rejeita estudos acadêmicos sobre o fazer literário.

A escola, em minha visão, é o ambiente onde o conhecimento não especializado do estudante deve se encontrar e ser alargado pelo conhecimento especializado do campo de dado componente curricular. Assim, seu conhecimento e uso da língua, e o conhecimento não especializado dito “tradicional” (aquele que, por exemplo, dita ao estudante o que é linguisticamente/gramaticalmente “certo” ou “errado”) que ele herda de seu meio sociocultural, deve ser ampliado pelo conhecimento especializado que será adaptado pelo professor à comunidade de estudantes da Educação Básica (Ensinos Fundamental e Médio).

E é exatamente isso – a ampliação de habilidades e competências – que intenciono com as atividades que frequentemente proponho aos estudantes. Em minha visão e experiência, é mais interessante e recompensador para os estudantes aprenderem a usar a chamada variedade culta da língua defendendo seu ponto de vista pessoal sobre um problema real num texto dissertativo-argumentativo do que fazerem exercícios de análise sintática em sala de aula. Afinal de contas, queremos usuários competentes da língua ou queremos formar, nos Ensinos Fundamental e Médio, professores de gramática prescritiva/normativa?

Ficarei deveras feliz se souber que um ex-estudante foi capaz, após ter terminado a Educação Básica, de compreender um contrato, escrever uma solicitação a um órgão público, falar ao telefone com um cliente, convencer um ouvinte, utilizar suas competências linguísticas para adentrar o universo acadêmico ou profissional. Esse é o “sonho” de qualquer professor com minha formação e experiência. Não ensino língua, na Educação Básica, para que os estudantes saibam dar nomes a cada uma das classes de palavras ou a todas as classificações verbais possíveis – esse é um tipo de conhecimento que espero de mim mesmo, como professor, e não dos estudantes.

Minha prática em sala de aula, obviamente, está condicionada por minha formação intelectual e profissional multifacetada. Também possuo formação e atuo em outras áreas de conhecimento. E todas elas se intercruzam quando ensino Língua ou Literatura. A História, as Ciências Sociais, a Teologia, a Filosofia, a Psicologia e a Geografia frequentemente adentram minhas “aulas” de Língua e Literatura. Minha formação não me permite abordar os componentes curriculares escolares – as “matérias” escolares – como campos isolados uns dos outros. Seu isolamento só pode existir nos pequenos compartimentos mentais que somos treinados a construir na escola. Eu me recuso a facilitar a construção de tais compartimentos em minha relação com os estudantes.

Essa é a razão por que debates, pesquisas e textos dos mais variados gêneros são e continuarão a fazer parte de nossas aulas. Não sou adestrador de animais domésticos; sou professor de seres humanos. Não esperem que eu adestre seres humanos: eu apenas tento facilitar seu caminho rumo à autonomia que deve marcar o ser humano!

domingo, 7 de agosto de 2016

Ainda sobre o "Escola Sem Partido": resposta a uma colega professora


Gibson da Costa


Cara Sandra,

Como você já pode imaginar, discordo frontalmente de sua opinião. E permita-me expor minhas razões.

Projetos de Lei como esse do ESP não representam uma “solução” para a educação brasileira. Em primeiro lugar, o uso que você faz do termo “solução” implica que haja um “problema”, mas você não identificou a que problema se referia. Em segundo lugar, mesmo que eu acreditasse que houvesse um problema “fundamental” com a educação, lei alguma poderia dar conta de todos os problemas que possam haver numa determinada área da vida social, como a educação.

Trata-se, na verdade, duma questão de visões distintas de mundo e, mais especificamente, do que significa ser um humano. Por exemplo, ao tratar professores como “manipuladores”, o discurso do ESP explicita sua visão dos estudantes: seres passivos, não reflexivos, que são “manipuláveis” – ou seja, não têm nem um pensamento próprio, nem responsabilidade para com suas próprias escolhas. Assim, para mim, o ESP só reforça um problema real que existe na sociedade brasileira como um todo e que, obviamente, se reproduz na escola. O nome desse problema é: AUTORITARISMO.

Voltemos ao art. 2º, inciso III, do Projeto de Lei nº 193/2016 do Senador Magno Malta – ou dos projetos assinados, com o mesmo texto, por diferentes vereadores, deputados estaduais e federais. Nele, se estabelece o princípio da “liberdade de aprender e de ensinar”. Agora, compare isso ao art. 3º, inciso II, da LDB (Lei nº 9394/1996), que, por sua vez, estabelece como princípio a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. A diferença, que é explícita, chega a representar uma “violência simbólica”: a liberdade proposta pelo ESP é apenas a “liberdade” de receber e de transmitir “conteúdos” (na realidade, poderíamos até mesmo discutir as noções de “liberdade” e de “conteúdo” que se escondem por trás dos projetos de lei e dos discursos dos partidários do ESP).

O que o ESP propõe é “desintelectualização” do ensino e da aprendizagem – e, consequentemente, sua desumanização. Sua visão não é de um professor pesquisador, autor, pensador. O professor do ESP é um mero transmissor de “conteúdos”. Ele recebe uma informação pronta e acabada de alguém que esteja numa posição hierárquica superior – os autores de livros didáticos (livros esses utopicamente higienizados de traços ideológicos com os quais os ESPistas discordam) ou sei lá mais quem! – e os transmite aos seus alunos.

Os alunos, por sua vez, são apenas receptores nessa cadeia transmissora de informações empacotadas. Eles são meros produtos duma tradição. Devem conhecer e seguir as regras, as normas, os ditos, o “certo”. Por isso, para os adeptos e defensores dessa visão diminuta da humanidade, ensinar e aprender limita-se a transmitir e memorizar fatos – sem crítica, sem questionamentos, sem provocações. Se pudessem, se desfariam de todos os professores e fabricariam o “mestre novo”: a máquina que conhece seu lugar (como retransmissor duma tradição construída para silenciar o lugar do ser humano) e sabe colocar o estudante em seu próprio lugar (como humano submisso à hierarquia dos que sabem mais do que ele e do que seus professores – a hierarquia autora do próprio ESP).

Assim, a deseducação proposta pelo ESP é aquela levada a cabo por um professor que não provoca. O aluno que o ESP quer produzir é aquele que não discorda (na verdade, só discorda se o professor for uma dessas criaturas etéreas que os apoiadores do projeto chamam de “esquerdista” ou “comunista” – e que seria todo aquele que discorda da visão de mundo proposta pelo ESP). Tudo segue o rito estabelecido na cartilha da hierarquia autoritária: uns falam, outros ouvem; uns mandam, outros obedecem!

Essa é a “solução” proposta pela ideologia do Escola Sem Partido! A “solução final” para a educação brasileira!

Você se refere a um “filósofo” que apoia o movimento. Como um “filósofo” pode apoiar o não questionamento? Ninguém que apoie a criminalização da expressão de ideias e conceitos pode ser tomado como “filósofo”. É, no máximo, uma fraude com um bom trabalho de marketing! Ele pode ser aplaudido por sua audiência, admiradora dos termos sofisticados e das assombrosas referências que faz aos “comunistas” (termo genérico aplicado a qualquer um que discorde de sua visão de mundo) ou, quando tenta ser mais elegante, aos “socialistas fabianos”, mas o que é sua mensagem além de um apelo ao autoritarismo ideológico?!

A propósito, uma maneira de selecionar o que escutamos – o que, em si, é uma atividade intelectual – é justamente sabermos quem nos fala. Quais são as ideias que essa pessoa defende? O que essa pessoa faz? Como ela ganha a vida? Por que ela diz o que diz? Quem apoia o que essa pessoa faz? Quem ela mesma apoia?

Por exemplo, não é curioso que os autores e defensores desses projetos de lei patrocinados pelo ESP – incluindo o citado “filósofo” – não incluam professores? Como essas leis se dirigem a professores da Educação Básica, seria razoável esperar que entre seus autores e apoiadores houvesse professores da Educação Básica (as pessoas que têm formação, conhecem a vida escolar, a atuam na sala de aula regular). Mas, não há. E o “filósofo” que você cita não é professor do ensino regular – nem no Brasil, nem onde vive!

Posso deixar claro o que penso que você deve saber a meu respeito:

Sou um professor. Ensino na Educação Básica e Superior. Não estou ligado a políticos. Não trabalho para partidos políticos ou candidatos políticos. Mas, obviamente, abraço um conjunto de ideias filosóficas que moldam minha visão política.

Acredito na liberdade de opinião e de expressão de opinião, e a defendo em minha prática. Minhas crenças filosóficas, religiosas e políticas, e minhas perspectivas teóricas, não são impostas a meus alunos e alunas como a única opção aceitável; mas elas, obviamente, estão presentes em tudo o que faço. E isso ocorre porque sou um ser humano, e não uma máquina. Por mais que queira e me esforce para manter um ambiente de abertura na sala de aula, ainda sou um indivíduo – ou, se preferir, um “sujeito histórico” –, o que implica que estou condicionado pelo que conheço e experiencio do e no mundo. E é exatamente por isso que considero a exigência duma suposta “neutralidade” como uma aberração irracional.

Nunca neguei que, de fato, houvesse professores que faziam apologias partidárias em sala de aula. Há professores que o fazem. Há professores que impõem sua compreensão filosófica como a única aceitável, correta, certa. Mas esses professores são uma minoria. E os que o fazem, são partidários das mais diferentes visões políticas; coletivamente, (possivelmente) sofrem de uma formação deficitária, e, individualmente, de um deficit ético. O problema na formação desses professores é o mesmo presente nas propostas do ESP: a visão da educação como um instituto autoritário, no qual o professor é um (re)transmissor e o estudante é um receptor.

Contudo, reconhecer que haja professores que “imponham” uma única visão da realidade social a seus alunos não é equivalente a dizer que esses estudantes sejam “manipulados”. Eles, em sua maioria, não o são. E não o são porque pessoas psicologicamente saudáveis não são “manipuláveis” como marionetes. Os estudantes não chegam à escola como tábulas rasas. Eles conseguem compreender o mundo ao seu redor. A eles podem faltar conceitos sofisticados e um conhecimento da “gramática teórica”, mas, ainda assim, são capazes de legitimar ou deslegitimar discursos. Negar isso, dizendo que os estudantes são “manipulados” pelos professores, é negar sua humanidade e sua capacidade de autonomia.

Então, se quer uma sugestão minha para lidar com as questões levantadas pelo ESP, talvez devêssemos começar por fazer um pacto – os professores, os pais, a escola, as autoridades educacionais, o ESP, o Poder Legislativo etc – pela autonomia do estudante. Os estudantes não são ratos de laboratório; são seres humanos e, assim, podem entender muito mais do que os legisladores e seus apoiadores conseguem imaginar. E nós, professores, já sabemos disso há muito tempo. Já está mais do que na hora de pôr o que sabemos sobre aprendizagem, sobre o desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes em nossa própria prática. Sejamos plenamente honestos com nossos estudantes: ESP, confesse aos jovens estudantes suas intenções autoritárias! Professores “manipuladores”, confessem aos seus alunos de onde saíram suas visões de mundo!... Verdadeiros professores: façamos nosso trabalho – é um direito de nossos estudantes!

segunda-feira, 18 de julho de 2016

“Escola Sem Partido”: A vitrine da ignorância e da irreflexão teórica


Gibson da Costa


Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 193, de 2016, de autoria do Senador Magno Malta*, do Partido da República, pelo Estado do Espírito Santo. O Projeto de Lei trata do já conhecido programa “Escola Sem Partido” que tem seus apaixonados defensores nas ditas redes sociais. Aqui, gostaria de, brevemente, tecer alguns comentários sobre o tal projeto legislativo.

Para compreender minhas observações sobre o projeto, você pode acompanhar as informações disponibilizadas na página da Consulta Pública do mesmo, onde estão disponíveis tanto o texto do PL quanto as informações acerca de sua tramitação no Senado. O endereço é o seguinte: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666

Em seu artigo 2º, enumeram-se os princípios que deveriam ser seguidos pela “educação nacional”. Este artigo trata-se, na verdade, duma reescrita do art. 3º da Lei nº 9.394/1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (a [des]conhecida LDB), que trata igualmente dos princípios que devem reger o ensino no país. As diferenças entre a lei vigente e a proposta são explicitadas já neste segundo artigo do Projeto de Lei. Para que as diferenças fiquem claras para você, exibirei, lado a lado, os dois artigos correspondentes – o artigo 3º da LDB e o artigo 2º do projeto aqui discutido.




O Projeto de Lei, no artigo 2º, inciso I, estabelece como um dos princípios reguladores da “educação nacional” a “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. O enunciado é jurídica e teoricamente absurdo. Em primeiro lugar, uma lei qualquer não pode estabelecer princípios para o Estado – só a Constituição Federal pode fazê-lo. O inciso em questão não estabelece “neutralidade” para a educação, mas sim para o “Estado”. Trata-se, assim, duma aparente inconstitucionalidade! Apesar de eu poder supor o que se pretendia nesse inciso I, sua redação é absurda, assim como o é a compreensão que se esconde por trás daquelas palavras.

Mesmo sendo contrário ao partidarismo eleitoral por parte de professores (isto é, de transformar as salas de aula em palanques eleitorais, como, de fato, muitas vezes ocorre), é impossível esperar “neutralidade política” e “ideológica” absoluta na educação – seja por parte do Estado, dos estabelecimentos ou dos professores. Assim, o conteúdo desse inciso I contradiz, em parte, os conteúdos dos incisos II, III e IV seguintes, que estabelecem o “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”, a “liberdade de aprender e de ensinar”, e a “liberdade de consciência e de crença”. Ora, “pluralismo” e “liberdade”, em si, são princípios políticos e ideológicos; logo, se deve haver pluralismo e liberdade na sala de aula, haverá a imposição – no fazer pedagógico – de perspectivas políticas: as perspectivas do pluralismo e da liberdade! Entende a contradição?... Assim, é absurdo falar em “neutralidade”!

A “neutralidade” é uma exigência incoerente e absurda em qualquer atividade que se julgue intelectual ou científica. Quando aprendemos, ensinamos, pesquisamos e divulgamos conhecimento, o fazemos a partir de pressupostos, princípios, modelos, métodos, teorias específicos. E esses são todos baseados em ideologias. Essas ideologias são sistemas ideários que servem de base e alicerce para as diferentes formas de “ver” o mundo; elas servem de base para as compreensões científicas, sociais, culturais e políticas que moldam aquilo que chamamos de “educação” – assim como servem de base para o próprio Projeto de Lei comentado aqui. A inclusão desse requisito numa lei – isto é, o uso do termo “neutralidade” – só mostra o quão teoricamente desinformados estão seus autores e patrocinadores, e quão incoerentes são suas expectativas.

É interessante, ainda, observar as prioridades da proposta. Se compararmos o artigo 3º da LDB com o artigo 2º do Projeto de Lei em questão, veremos que não há real preocupação com “pluralismo” e “liberdade” no projeto (contrariamente, essa preocupação está muito explícita nos incisos I a IV, do art. 3º da LDB). Há, sim, uma explícita preocupação com temas referentes à sexualidade (leia o parágrafo único), e, implicitamente, uma preocupação com o trato de religiosidades discordantes do Cristianismo (leia o inciso VII, e tenha em mente os vários incidentes de protesto contra a discussão de religiões ditas “afro-brasileiras” e o próprio contexto e história do Senador que assina o projeto).

Leia todo o Projeto de Lei e perceberá que o que o mesmo faz é, na verdade, redefinir os conceitos de “pluralismo” e de “liberdade”!

O parágrafo único do art. 2º do Projeto de Lei é ainda mais risível do que os incisos que o precedem:

O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.

O que se lê por trás desse absurdo teórico é que podemos manipular a orientação emociono-sexual (chamada acima de “opção sexual”) de nossos alunos. Além de cometer o equívoco comum de se reduzir os aspectos relacionais entre emoção e sexualidade a apenas uma mecânica sexual, o texto da lei proposta define categoricamente esses aspectos como sendo uma “opção sexual”, o que, mais uma vez, contradiz o texto da própria proposta. Se a sexualidade humana resume-se a uma questão de “opção”, logo, não importaria “a identidade biológica do sexo”, já que se poderia, de qualquer forma, escolher sua sexualidade! Conhecendo as ideias que o Senador Magno Malta já explicitou em suas falas públicas sobre o tema, torna-se fácil perceber a confusão feita entre aquilo que chamei de “orientação emociono-sexual” e o de identidade de gênero.

Ademais, o que se quer dizer por “sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”? A que “teoria de gênero” o texto se refere? À teoria utilizada pelo autor na escrita de seu Projeto de Lei? Ou se refere à teoria de gênero utilizada pelos professores de língua e literatura? Novamente, o uso duma noção tão ampla contradiz o “especialmente” do trecho citado – como pode-se vetar “especialmente” algo que não fica especificado? O conhecimento teórico do autor é tão baixo que ele se vê obrigado a utilizar a expressão “teoria ou ideologia de gênero”. [Ele não possui nenhum assessor com treinamento acadêmico suficiente para auxiliá-lo no uso duma linguagem apropriada?]

Mas ainda pior do que o texto do Projeto de Lei é o texto da Justificativa. Nela, o ilustre Senador se contradiz de forma explícita, em sua discussão de diferentes “liberdades”. Ademais, oferece a seguinte pérola doutrinária (na justificativa nº 4):

Liberdade de ensinar – assegurada pelo art. 206, II, da Constituição Federal – não se confunde com a liberdade de expressão. Não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa;


O autor, aparentemente, não aprendeu que, de acordo com os princípios constitucionais do ensino (estabelecidos no art. 206 da Constituição Federal, que ele mesmo cita) e com o histórico do ordenamento jurídico brasileiro, os professores possuem a chamada “liberdade de cátedra” – ou seja, podem “livremente exteriorizar seus ensinamentos aos alunos, sem qualquer ingerência administrativa, ressalvada, porém, a possibilidade da fixação do currículo escolar pelo órgão competente” (MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 21.ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 786-787). Então, sim, a liberdade de ensinar se confunde com a liberdade de expressão – ao menos de acordo com a história jurídica brasileira desde, pelo menos, a Constituição Federal de 1934, que, em no artigo 155, declarava “É garantida a liberdade de cátedra”. A Constituição Federal de 1946 declara o mesmo, no art. 168, inciso VII; o que novamente repete-se na Constituição de 1967, art. 168, parágrafo 3º, inciso VI.

A Constituição Federal atual (1988), por sua vez, apesar de não prever explicitamente a “liberdade de cátedra”, implicitamente a inclui no texto do inciso IX do art. 5º, que declara que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Ou seja: sim, a liberdade de ensinar se confunde com a liberdade de expressão – e a declaração do Senador, em sua justificativa, é embaraçosamente equivocada. A liberdade de expressão do professor pode não ser absoluta, obviamente, mas – num Estado Democrático de Direito, como o é a República Federativa do Brasil – é parte indissociável do ofício docente.

Por essas e outras razões, às quais não posso me deter agora, afirmo que esse Projeto de Lei, assim como todo o movimento que lhe serve de base, é uma vitrine da ignorância e da irreflexão teórica que só cria entraves para a verdadeira liberdade e pluralidade de ideias – seja na sociedade como um todo, na vida do indivíduo, ou nas escolas, mais especificamente.

Diga NÃO ao Projeto de Lei nº 193/2016!!!


*NOTA: Apesar de eu tratar o Senador Magno Malta, aqui, como autor do Projeto de Lei, o texto não é de sua autoria. Trata-se do mesmo texto apresentado em outros projetos estaduais e municipais em várias partes do Brasil. Vide o sítio do "Projeto Escola Sem Partido".

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Ensino de Literatura: brevíssimas observações


Não tenho tempo agora para responder a todas as questões levantadas pelos colegas que participaram do debate sobre ensino de Literatura, mas, brevemente, gostaria de fazer só algumas observações:

1) Não rejeito a abordagem cronológica apenas no ensino da Literatura; a rejeito também nos ensinos de História e de Filosofia. Até hoje, na maioria dos casos – há algumas exceções –, a abordagem temática tem funcionado em minha prática docente. A organização de obras e autores em períodos e movimentos é utilitária e, assim, pode ser substituída por outra forma de “classificação” (para aproveitar o termo utilizado na discussão). Minha intenção, enquanto professor de Literatura na Educação Básica, não é formar pseudo historiadores da Literatura, capazes apenas de marcar uma opção em perguntas de múltipla escolha: é, antes, formar leitores competentes, atentos, que saibam ler nas entrelinhas, e que desenvolvam um apreço pela leitura literária – de acordo com seus próprios gostos.

2) Note que me referi à abordagem cronológica – que alguns chamaram equivocadamente de “abordagem historiográfica” (e digo “equivocadamente” porque uma abordagem não se torna “historiográfica” simplesmente por fazer uso de dados cronológicos!) – apenas no que concerne ao ensino na Educação Básica. Obviamente, se estivéssemos formando historiadores da Literatura, necessitaríamos nos preocupar, até certo ponto, com dados cronológicos. Mas esse não é o caso na escola.

3) Não poderia ser mais direto acerca de minha posição e prática do que fui naquela discussão. Na maioria das escolas brasileiras onde há alguma forma de “instrução” literária, essa se resume a uma aula de cerca de cinquenta minutos semanais. Se olharmos para as propostas curriculares, e mesmo para os livros didáticos – ou melhor, os “ditadores das aulas” (considerando que, frequentemente, são esses materiais que ditam não apenas o que deve ser ensinado, mas também como deve ser ensinado!) –, veremos que o curtíssimo tempo das aulas de Literatura não nos permitiria tratar de todo aquele conteúdo e, ao mesmo tempo, formar leitores literários. Então, há de se fazer uma opção. A minha opção tem sido sempre a de facilitar a formação de leitores literários – a história literária, no caso específico da escola, torna-se, em minha prática, apenas uma ferramenta secundária. Honestamente, não me envergonho de minha opção!

4) É aí que entra a teoria. As concepções “teóricas” que abraçamos – e por “teóricas”, aqui, me refiro à visão que temos da realidade, que não é necessariamente tão sistemática quanto as chamadas “teorias” que utilizamos no meio acadêmico e/ou científico – estão indissociavelmente atreladas ao processo de leitura. Todos nós projetamos sobre os “textos” que “lemos” nossa visão de mundo; e, no caso específico da Literatura, nós professores projetamos nossas bases teóricas (agora, sim, da Teoria enquanto construção filosófica) sobre os textos que lemos e discutimos em sala. É por essa razão que, para mim, se faz necessário informar aos estudantes acerca de minhas fontes teóricas, da diversidade de visões teóricas e que, portanto, é possível se chegar a compreensões diversas dum mesmo texto. Isso nem sempre é fácil, mas é possível.

Essa é uma discussão política deveras complexa e que, como viram, leva a manifestações nem sempre muito gentis entre colegas de profissão. Posso resumi-la a um ponto crucial: eu, enquanto professor, não sou um ditador intelectual – sou um facilitador da aprendizagem; assim, me recuso a imaginar que meus alunos não sejam capazes de lidar com ideias e com o conhecimento!

Assim que tiver mais tempo, responderei às questões que me enviaram.

Grande abraço!

Gibson da Costa

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Uma breve resposta a críticas desinformadas sobre o Construtivismo


Como resposta a uma manifestação minha sobre as afirmações dum vlogger/autor brasileiro (guru duma nova geração autoproclamada “conservadora”), um colega me enviou a ligação para um vídeo no qual o mesmo autor discorre – em sua “civilizada” maneira! – sobre aquilo que ele chama de “método sócio-construtivista”, ou o que o resto de nós chama de “construtivismo”.


Abaixo, responderei, brevemente, a algumas das perspectivas expostas no vídeo – deixando de lado, por ter mais o que fazer da vida, as recorrentes grosserias do nobre filósofo para com seu público.


1. “Método sócio-construtivista”

O construtivismo, em si, não é um método de ensino, é um conjunto de teorias epistemológicas. Sobre essas – ou uma ou algumas dessas – múltiplas teorias podem-se construir diferentes métodos de ensino; assim, não há “o método construtivista de ensino”.


2. “Para o método construtivista de ensino só existe [sic] dois elementos em jogo: um é o aluno e o outro é o mundo, que é o objeto.”

A propósito, para alguém que ataca a “incorreção” gramatical alheia como uma forma de “burrice”, é interessante como Carvalho consegue cometer um erro de concordância verbal tão simples: ele, talvez, não saiba que o verbo “existir” deve concordar em número com seu complemento, assim “só existem dois elementos”! Mas, como não partilho da visão linguística do nobre filósofo e, assim, não penso que as pessoas que violam a “gramática” normativa sejam intelectualmente deficientes – se o fizesse, tanto ele quanto eu seríamos intelectualmente deficientes –, analisemos sua afirmação:

Não, para construtivistas não há apenas “dois elementos em jogo” no processo de aprendizagem. Para compreender isso, temos de nos lembrar de onde saem as ideias construtivistas. Temos de revisar um pouco da história da filosofia.

Pensemos sobre as questões epistemológicas da modernidade – isto é, questões que lidam com a origem do conhecimento. No chamado Ocidente, temos lidado, na modernidade, com três grandes tradições que buscam oferecer uma explicação filosófica para o ser e o fazer do conhecimento, e, consequentemente, para como aprendemos: A) a tradição racionalista moderna, iniciada por René Descartes; B) a tradição empirista, iniciada por John Locke; e, C) a via media da tradição interacionista de Immanuel Kant.

Explicando cada uma dessas grandes tradições de forma muito breve – e, portanto, deficiente –, poderíamos resumi-las da seguinte forma:

a) A tradição racionalista moderna → o racionalismo moderno emergiu como uma versão atualizada do idealismo platônico. Para a tradição platônica, já trazíamos, desde antes do nascimento, as ideias das coisas, que nossas almas já conheciam desde sua vinda do mundo das ideias verdadeiras/perfeitas. Em sua versão moderna, as ideias são compreendidas de forma mais ampla, mas, ainda assim, como algo que trazemos ao mundo – ou seja, como algo inato. Diferentemente do idealismo platônico, o racionalismo moderno se baseia no raciocínio a partir da natureza desenvolvida na modernidade. Em seu cerne, encontra-se a visão de que as únicas fontes de conhecimento sejam, exatamente, a razão e o pensamento.

b) A tradição empirista → opostamente ao racionalismo, o empirismo compreende o conhecimento como algo que se obtém a partir do mundo externo, por meio dos sentidos, da experiência. Assim, para os empiristas, nasceríamos com uma mente sem conteúdos – uma tábula rasa. O conhecimento seria obtido apenas através da experiência com o meio e com os estímulos externos – ou seja, o conhecimento viria do objeto, de forma passiva, para o indivíduo; o objeto externo é, assim, a única fonte de conhecimento.

c) A tradição interacionista → Immanuel Kant, em sua monumental “Crítica da razão pura”, ofereceu uma solução para os reducionismos tanto do racionalismo quanto do empirismo. Para Kant, tanto o sujeito quanto o objeto externo desempenhariam um papel na formação do conhecimento. Através da intuição recebemos as impressões dos objetos externos; e, através do entendimento, articulamos essas impressões, aplicando os conceitos que dão forma a esses objetos. Em outras palavras, o conhecimento seria formado através da interação entre o pensamento humano e a experiência sensorial. [Obviamente, a teoria do conhecimento desenvolvida por Kant é muito mais complexa do que essa simplificação, mas não é minha intenção aqui discuti-la – apesar de sua fundamentalidade para o construtivismo.]

Essa teoria epistemológica de Kant é a base filosófica para o construtivismo, originalmente, a chamada “epistemologia genética” de Jean Piaget. Piaget desenvolveu sua epistemologia genética influenciado pela epistemologia de Kant, mas é importante ter o cuidado de não sinonimizá-las – elas não são, necessariamente, a mesma coisa. Obviamente, o construtivismo, enquanto conjunto de teorias, recebeu contribuições importantes de outros pensadores além de Kant e Piaget, como Vygotsky, Luria e Wallon, por exemplo.

Mas, voltando à afirmação de Carvalho, na abordagem construtivista, aqueles dois elementos, tanto na formação do conhecimento quanto no processo de ensino-aprendizagem escolar, são insuficientes em si mesmos. É necessária a interação entre os dois; e, na escola, essa interação ocorre por meio da facilitação oferecida pelo professor.


3. “… e, no fim, chegará a obter toda uma concepção organizada do mundo a partir da [sic] mero experimento espontâneo. […] Agora, toda esta escola que foi adotada no Brasil, há cinquenta anos, e vê esses filhos das p***** desse Jean Piaget, Emilia Ferreiro, Vygotsky, Paulo Freire… todo esse bando de charlatão e vigarista [sic], p****!… O ensino é assim: o ensino não pode ser diretivo…”

Esse é o tipo de afirmação feito por quem não conhece as teorias que servem de base para o construtivismo. Os diferentes métodos construtivistas não são espontaneístas ou não-diretivistas, como assevera Carvalho. Piaget, por exemplo, ensinava que a aprendizagem é “provocada” pelo professor. Para Vygotsky, o professor é o “mediador” da aprendizagem. Para Wallon, é através da “intervenção” planejada e informada do professor que ocorre a aprendizagem na escola. Todos eles desmentem a afirmação do candidato a filósofo da educação acima sobre qual seria a perspectiva teórica construtivista.



4. “… é pra isto que existe a figura do mediador, do professor… sem o qual o aprendizado é impossível, impossível."

Nesse ponto, posso concordar com o filósofo. Toda aprendizagem é sempre mediada. Para o construtivismo, na escola, essa figura de mediador é assumida pelo professor. Obviamente, o professor não é o único mediador no processo de aprendizagem duma criança, dum jovem ou dum adulto; ele o é no meio escolar.

É importante, aliás, conceituar a própria mediação, para evitarmos maiores incompreensões. O termo refere-se ao elo (leia-se “ponte”, “ligação”) entre o sujeito e seu objeto de aprendizagem – ou seja, é um processo de facilitação da construção do conhecimento por um personagem extra nessa interação entre o sujeito e o objeto. Isso é parte essencial das teorias construtivistas, e só alguém que não conheça as obras dos autores-chave dessa tradição poderia afirmar o contrário.


5. “Eu hoje mesmo tava [sic] lendo, a primeira página da Folha de São Paulo, você tem uns vinte erro [sic] de gramática na primeira página dum jornal, p****! Isso quer dizer que os profissionais de idioma não sabem mais o idioma… E as pessoas assim, elas não conseguem raciocinar…”

E isso foi, na verdade, para fechar com chave de ouro! Nem falarei sobre as perspectivas linguísticas abraçadas pelo pensador acima. Não preciso, agora, comentar mais nada dito nesse vídeo. Só me resta dizer que quando falamos, sem limites de bom senso, sobre tudo – mesmo aquilo que não conhecemos –, corremos o risco de, além de nos contradizermos, nos ridicularizarmos! Essa é uma lição que mesmo os grandes “filósofos” deveriam aprender!


Gibson da Costa

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Sim, em minha sala de aula sempre haverá partidos!: minha resposta à tentativa de censura duma discussão em sala


Gibson da Costa

A maioria de meus alunos(as) – sim, utilizo essa palavra por não subscrever ao mito sobre suas origens – conhece algumas de minhas posições ideológicas. Meus alunos e alunas sabem, por exemplo, que dou preferência à paz, que sou um defensor da liberdade de consciência e expressão, e que sou um promotor da democracia em nossa própria relação; conhecem minha visão sobre ouvirmos os vários lados de uma discussão para sermos capazes de construir um julgamento mais equilibrado e justo; sabem o quanto rejeito o preconceito infundado contra ideias e pessoas, e sabem até que ponto posso provocá-los para que analisem seus próprios argumentos numa discussão.

…Tudo isso é muito explícito na relação que construímos em sala – faço questão de deixar claro de onde falo, e de que saibam que podem discordar de qualquer coisa que eu diga, desde que defendam argumentos sólidos em sua oposição (um foco em tudo o que fazemos em sala).

Esse é o meu “partido”, o meu “lado”. E todos eles podem tomar parte em qualquer “partido”, qualquer “lado”. Se discordar da visão de qualquer um deles ou delas, conhecerão exatamente quais são minhas razões. E sempre incentivo a cada um deles a expressar suas opiniões e razões.

Meus alunos, contudo, nunca ouviram de minha boca que deveriam votar nos candidatos do partido A, B ou C, porque os dos demais partidos eram piores. Nunca me viram com camisetas, bandeiras ou etiquetas partidárias. E nunca ouviram ou viram isso porque confio em e respeito: 1) sua inteligência e autonomia; e 2) meu próprio trabalho. Mas, ainda assim, acredito que saibam claramente qual é o meu “partido”, isto é, de que “lado” estou no mundo que nos cerca.

Durante toda a minha carreira como professor, ao longo da última década e meia, tenho me esforçado para ajudar os estudantes com quem trabalho a desenvolverem a capacidade de questionar o que digo e suas próprias certezas, e de articular seus pensamentos de forma racional e inteligível. Esse é um de meus trabalhos principais como professor – especialmente nesta época na qual qualquer pessoa tem acesso a [quase] qualquer tipo de informação sem a necessidade de intermediação dum tutor.

Confesso que isso não é fácil. Nem sempre é fácil convencê-los de que é possível integrar o que aprendem em outros componentes curriculares aos nossos cursos de Língua, Literatura, História ou Filosofia. Nem sempre é fácil facilitar debates de temas “polêmicos” em classes que possuem estudantes com backgrounds tão diferentes entre si, e tão diferentes do meu. Nem sempre é fácil ensinar que, num debate, nossas emoções devem ser limitadas pela “racionalidade” crítica. Nem sempre é fácil ajudá-los a perceberem que nem sempre as respostas que encontramos são a coisa mais importante: o caminho que percorremos até uma resposta, frequentemente, é muito mais importante. Nem sempre é fácil, mas minha experiência me mostra que é possível. Os riscos são altos – afinal, em nossas escolas acorrentadas às visões do século XIX, um professor despir-se da manta da “autoridade” para ensinar sobre autonomia e liberdade intelectual é quase cometer suicídio profissional diante de alguns colegas e pais –, mas têm sido, até aqui, recompensadores.

Sim, em minha sala de aula sempre haverá “partidos”. Sempre haverá o “partido” de cada um de nós, pois todos temos os nossos próprios. Sempre haverá ideologias, credos, crenças, ideias, convicções por trás do que ensino e como ensino. Os livros e os temas que escolho para discussão são baseados em certa compreensão que tenho do mundo – em certa “ideologia”. As respostas de meus alunos, seus argumentos e suas discordâncias são todos também baseados na forma como enxergam o mundo. Esses são nossos “partidos”, nossos “lados”. É tolice pensar que qualquer forma de ensino seja descompromissada com um “partido” (no sentido metafórico ou factual). Tudo o que faço, como professor ou cidadão, é plenamente “partidarizado”; e isso porque sou um ser racional, consciente de minhas escolhas ideológicas.

Imaginar e dizer que a discussão de um livro com os alunos aos quais ensino é uma tentativa de “fazer lavagem cerebral” neles é subestimar sua inteligência. Eles foram suficientemente maduros para selecionarem sua leitura, e têm sido suficientemente maduros para se engajarem na leitura e discussão do livro. Pessoalmente, confio em sua maturidade e capacidade, e em minha própria para facilitar as discussões. E convido a cada um dos pais, mães ou responsáveis a participarem de nossas aulas e discussões. Se estiverem lá, perceberão que seus filhos são plenamente capazes de defenderem seus próprios pontos de vista e convicções. Perceberão que todos eles têm seus próprios “partidos”, pois são seres humanos – seres que pensam sozinhos. E se perguntarem a eles, se lerem o que eles escrevem, se averiguarem os tipos de trabalhos que fazem, perceberão que têm uma ampla liberdade em nossas aulas.

E, novamente, reafirmarei que em minha sala de aula sempre haverá “partidos”! Isso é uma exigência de qualquer atividade racional e que se considere “científica”, como o é a empreitada escolar! Sempre estarei disposto a pagar o preço necessário pela “multipartidarização” de minha sala de aula.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Currículo, autonomia e a escola que quero para minhas classes em 2016


Gibson da Costa

Escolho não participar das disputas medíocres que emergiram na grande mídia e nas redes sociais sobre as propostas da BNCC – a Base Nacional Comum Curricular –, especialmente no que concerne às minhas áreas de ensino na Educação Básica. Contudo, como um professor veterano – diferentemente dos “especialistas” que nunca puseram um pé na sala de aula como professores da Educação Básica –, gostaria de fazer algumas observações pessoais:

Enquanto uma padronização curricular nacional seja, até certo ponto, desejável, a mesma não é suficiente para resolver os problemas enfrentados na Educação Básica brasileira. Mais uma vez, parece que não se consegue sair das velhas disputas sobre “o que ensinar”, quando o desafio, na vida real da sala de aula, é muito mais complexo do que isso.

Mais do que sugerir a inclusão ou exclusão de temas nos conteúdos curriculares, o que precisamos é pensar nos atores principais do processo educativo formal: os/as estudantes. E pensar nesses atores significa considerar seus próprios interesses no que tange à sua formação; significa conceder-lhes um certo grau de autonomia, de acordo com sua capacidade cognitiva, para que escolham, dentre certas opções, o que querem aprender.

Ora, o problema é que a educação ainda é pensada a partir de perspectivas hierárquicas, corporativistas e autoritárias – desde a educação infantil até a superior. Os próprios professores são treinados para atuar nesse molde, tendo muita dificuldade de enxergar seu fazer fora dum eixo vertical de cima para baixo. Isso se explicita na própria formação docente, por exemplo (os professores não são formados para ensinar em “áreas”, mas em “componentes” individuais), e no modus operandi da escola.

Sempre fico muito perturbado com a forma como tão facilmente as ideias atreladas ao currículo são dissociadas da forma como as relações são construídas na escola. Pare e pense, por exemplo, no que muitos de nós – se não a maioria – fazemos enquanto ensinamos sobre autoritarismo, por exemplo, nas (talvez equivocadamente) chamadas Ciências Humanas. Tratamos sobre questões referentes à liberdade de expressão e censura, democracia e ditadura etc, num ambiente cuja arquitetura nos torna [os professores, isto é] o centro do processo – afinal os assentos dos estudantes se dirigem a nós, e espera-se que todos eles olhem para nossa direção, como evidência de sua submissão à nossa autoridade –; num ambiente no qual, muitas vezes, a discordância e o inconformismo são interpretados, por nós, como sinônimo de “desrespeito”; num ambiente no qual a fala autoritária do professor é vista como ensino, mas o questionamento do estudante não é visto como aprendizado; um ambiente no qual o estudante é obrigado a “estudar” tudo o que os legisladores e “especialistas” lhes impuseram, independentemente de seus interesses; num ambiente no qual os resultados que realmente importam são expressos em notas alcançadas numa prova.

Esses são pontos que deveriam ser discutidos em qualquer tentativa de reforma curricular – considerando que “currículo” seja muito mais do que apenas “conteúdos”.

Sim, obviamente sei que minhas perspectivas e expectativas resultam de minha formação numa cultura escolar estranha àquela experienciada pela maioria de meus colegas e concidadãos brasileiros. Mas é justamente minha experiência pessoal, tanto como estudante quanto como professor, que me faz crer e confiar firmemente no papel da autonomia na educação. Há algo de deficiente nas expectativas do sistema escolar quando o estudante é controlado durante toda a sua vida e, repentinamente – se e quando tiver a oportunidade de alcançar a Educação Superior –, tem de encarar escolhas por si só (supondo que, de fato, as faça); ou tem de fazê-las em sua vida profissional ou mesmo emotiva. Como nunca pôde escolher nada de impactante em sua vida, como os componentes que estudaria na escola, por exemplo, como pode ter desenvolvido maturidade suficiente para lidar com as escolhas da vida adulta?

Todos esperamos que os jovens e adultos sejam capazes de articular seus pensamentos de forma inteligível, mas como o poderiam fazer se passaram a infância e a adolescência sendo censurados inclusive por aqueles que deveriam tê-los ajudado a desenvolver suas habilidades discursivas? Como poderiam ser adultos autoconfiantes quando passaram sua infância e adolescência sendo tratados como incapazes e subalternos?… Você pensa que a escola não faz isso com os estudantes? Pois é exatamente isso que faz quando não reconhece seu direito à autonomia!

Então, querem uma reforma curricular? Comecem por dar responsabilidades aos estudantes quanto à sua própria formação, de acordo com suas capacidades, além de reconhecer seu direito à criatividade, ao erro, à tentativa… Diminuam os componentes curriculares obrigatórios na Educação Básica; criem componentes optativos; mudem a forma de organização física das salas de aula; acabem com a absurda indústria da metrificação da aprendizagem; formem professores que possam atuar em áreas de saber e não apenas em componentes isolados, que sejam também autônomos, ao mesmo tempo em que tenham competência para colaborar.

Obviamente, a melhora nas condições de trabalho (inclusive de pagamentos e benefícios) dos professores é também importante, mas a experiência demonstra que isso não é suficiente. Assim como não são as decisões burocráticas acerca do currículo. Melhorar as condições e os resultados da educação escolar exige ações muito mais amplas!