Em
se tratando de cultura, poucas coisas me aborrecem mais do que a
conversa entediante sobre “pureza” (isto é, a qualidade de ser
sem corrupção, infecção, imperfeição, mixagem etc) que alguns
insistem em levantar. Aquele devaneio a-histórico de que haja
uma “cultura pura”, uma “língua pura”, um “estilo puro”,
etc, é absurdo e idiótico. Não é à toa que mantenha uma relação
tão estreita com noções racialistas e de supostas “purezas
étnicas” – por exemplo, a ideia de que haja uma “cultura
brasileira” pura e original, ou de que alguém deva ter “orgulho
de ser brasileiro/sulista/nordestino”!
Aliás,
a ideia duma brasilidade “pura” serve de modelo quase perfeito
para a demonstração da fraqueza do “argumento” a favor da ideia
de pureza cultural/étnica. Lembro-me das muitas vezes que
vi/assisti/ouvi/li (especificamente nos E.U.A., no Reino Unido e na
Dinamarca), anúncios turísticos vendendo o Brasil como a terra da
praia, do samba, da cerveja, e do futebol – isso para não incluir
aqui o apelo sexual feito por muitos daqueles anúncios. Refletindo
os esteriótipos repetidos no dia a dia brasileiro, aqueles anúncios
vendem ao público internacional – especialmente na América do
Norte e na Europa –, mas também o fazem no Brasil a brasileiros, a
imagem dum “povo” que aprecia e consome aqueles “presentes”
como se não houvesse um amanhã!... O problema é que há milhões
de brasileiros que não conhecem o mar – o que implica que não vão
à praia (banhada pelo Atlântico) –, e inúmeros outros que não
gostam de samba, de cerveja ou de futebol!
Desde
a infância, os brasileiros aprendem, na escola e fora dela, o mito
sobre uma formação étnica tripartite: os “brasileiros” (O que
é isso, a propósito? Um pedigree?) adviriam do mix de três
grupos/raças – a saber os [amer]índios, os portugueses e os
africanos! [Mesmo com todas as reformas curriculares já feitas, isso
ainda permanece!] Esse povo falaria apenas português. Professaria e
praticaria apenas as fés cristã (e apenas em suas formas
ocidentais), candomblecista e umbandista... Esqueçam que mais de
duzentas línguas são faladas no Brasil, por brasileiros – e que
muitos brasileiros, no Brasil, não falam português. Esqueçam que
muitos brasileiros não professam ou praticam aquelas expressões
religiosas majoritárias. Esqueçam os muitos brasileiros que não
portam um sobrenome português ou luso-brasileiro, mas que têm
apenas o Brasil como lar, até porque é o único país que
conhecem!... O que são eles, afinal? Marcianos caminhando sobre a
“Terra do Vale Tudo”?
...Essa
é a imbecilidade da etiquetagem de seres humanos em categorias
artificiais – um dos resultados da “a-historicidade”
(porque trata-se duma negação da experiência histórica humana) de
noções de “pureza” cultural/ética.
Essas
noções de “pureza” têm uma ligação com muitas dos
comentários que ouço, por exemplo, no que concerne à música, à
literatura e à própria língua. Os comentários que engrandecem a
MPB, o samba, o forró, etc, quando comparados a outras formas
musicais – como o rock, o pop, o funk, a EDM etc –, como se esses
fossem os “originais representantes” da brasilidade ou, pelo
menos, da musicalidade brasileira, se sustentam sobre o equívoco de
que a “cultura” seja imutável, permanente. A ideia de que se
está desvirtuando a arte literária quando, por exemplo, uma obra
canônica tem sua linguagem “atualizada” para um público jovem
assenta-se sobre uma compreensão equivocada tanta da historicidade
linguística quanto da “natureza” da arte literária (e
já tratei disso aqui). E todos esses equívocos baseiam-se numa
perspectiva de que a humanidade e suas criações – sim, a
“cultura” é uma criação humana, ela não “caiu do céu”! –
possam ser congelados ou petrificados no tempo e no espaço.
O
mais interessante é observar que os defensores dessas ideias
utilizam os meios digitais contemporâneos – criações de nosso
tempo – para defender um retorno à pureza mítica. Quanta
incoerência!… Que sejamos salvos dessa obsessão por “pureza”
cultural/étnica!
+Gibson