quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Que utilidade pode ter uma formação nas humanidades para o “mercado de trabalho”?


Gibson da Costa

Ouvi, numa palestra sobre “os profissionais do futuro”, comentários acerca dos supostos tipos de profissionais desejados pelo “mercado”. Um dos palestrantes dizia que os jovens deveriam estudar algo “mais útil do que as ciências humanas”, se quisessem encontrar um emprego “decente”. Ele sugeriu que estudassem Administração de Empresas! [Talvez não soubesse, a propósito, que as chamadas “ciências sociais aplicadas”, como a Administração, são parte do grande grupo das humanidades!]

Não é interessante que o tipo de pergunta que serve de título para este texto, e que serve de fundo para os comentários que ouvi naquela palestra, seja sempre feito sobre as chamadas “ciências humanas”? [As aspas, a propósito, devem ser tomadas como um indicativo de minha discordância com o uso da expressão.]

Por que uma formação em Filosofia, História, Teologia ou Letras – só para citar alguns dos campos mais discriminados pelo tal “mercado de trabalho”, e algumas de minhas áreas de formação – não seria apropriada fora do mundo da educação ou da religião? Alguém com uma boa formação numa dessas áreas idealmente possui certas habilidades valiosas para qualquer empregador, dentre as quais:

  • saber pesquisar e analisar evidências;
  • conseguir perceber o que não está imediatamente aparente nos aparatos sociais;
  • compreender os processos de criação de conexões humanas;
  • articular uma argumentação persuasiva;
  • expressar ideias e soluções inovadoras;
  • possuir autonomia intelectual;
  • saber trabalhar sob pressão e dentro de um determinado prazo.

Como isso não seria útil a essa entidade quase etérea que chamam de “mercado de trabalho”? Que tipo de empregador não consideraria tais habilidades como essenciais ao seu negócio? Se os laboradores das humanidades que conhecem não correspondem a essa figura ideal listada acima, responsabilizem sua formação ou sua atitude, e não o campo que supostamente estudaram – caso contrário, começaremos a pensar que todos os que possuem formação nas áreas financeiras são plenamente ignorantes dos meandros da vida e conhecimentos humanos.


segunda-feira, 7 de novembro de 2016

ENEM, vestibular e exclusão: algumas questões políticas



Gibson da Costa

Todos os anos, escrevo demais sobre a I.T. (insanidade da testagem) que assola nossos sistemas de educação. Não direi mais (quase) nada novo; minha criatividade é limitada. Mas tenho algumas perguntas a fazer:

1) Não é engraçado que as provas do ENEM e de vestibulares se baseiem na premissa de que os estudantes do Ensino Médio brasileiro aprendam matemática, química, física e língua estrangeira – apenas para citar os exemplos mais óbvios – no nível exigido nesses testes, independentemente de seu local de origem, tipo de escola, etc? [Esqueçam, por um instante, a avaliação socioeconômica que também é levado em consideração quando da atribuição de notas.]

2) O que as instituições testadoras – o INEP/MEC, no caso do ENEM, ou as instituições superiores, no caso dos vestibulares – dizem aos, e acerca de, os candidatos quando os tratam como “bandidos”, revistando-os, coletando suas impressões digitais etc? Eles são estudantes ou ladrões e assassinos?

3) Ainda sobre a pergunta anterior, os que abraçam a ideologia brasilo-burguesa dirão que a segurança se justifica pelo fato de haver grupos que tentam tirar proveito das provas. Respondo com outra pergunta: Não seria melhor, então, encontrar outro caminho que não essas provas que não “provam” absolutamente nada de relevante, mas que funcionam muito bem como túnel excludente para aqueles que buscam a oportunidade de educação superior numa instituição pública?

4) Por que razão os estudantes deveriam pagar para se candidatarem ao ingresso numa instituição pública? Se a educação é um direito do cidadão, e a educação superior pública é mantida por meio dos impostos pagos por todos os cidadãos, não seria razoável esperar que os candidatos pudessem concorrer a um lugar sem pagar por isso? [Sim, conheço as justificativas quanto aos gastos administrativos referentes às provas – mas essas são impostas pelas instituições, logo, deveriam ser plenamente custeadas por elas próprias!]

5) Agora não mais uma pergunta, mas uma colocação direta: O Brasil tem uma tradição de seletividade excludente que parece se basear naquilo que chamei acima de “ideologia brasilo-burguesa” (a ideologia belicista de autodefesa característica da “burguesia” brasileira) – isto é, os grupos dominantes brasileiros sempre dificultaram o acesso à educação superior aos grupos menos favorecidos, o que historicamente tem se manifestado através dos dispositivos de testagem, e os preços cobrados para tomar parte nesses, utilizados pelas instituições educacionais. A seletividade é tamanha, e tão naturalizada, que mesmo profissionais altamente instruídos do campo educacional se manifestam contrariamente a qualquer crítica ao instituto da testagem – não percebendo que o mesmo contradiz aquilo que muitas vezes proclamam como sua visão política maior.

6) O ENEM, por exemplo, não é um instrumento de acesso equitativo à educação, principalmente porque não reflete a realidade da maioria das escolas públicas e mesmo privadas do Brasil. Ele é feito para reprovar. Quando se aplica uma prova como teste de admissão, espera-se que a mesma desempenhe um papel de filtragem. Como o ENEM serve como teste de admissão, sua missão é ser esse filtro, ou seja, é ser um agente de exclusão, de reprovação. As universidades não deveriam ser o lugar aonde vão aqueles que querem aprender? Ou deveriam ser apenas o gueto para os socioculturalmente afortunados ou, pelo menos, para os treinados pela indústria do pré-ENEM/pré-vestibular?

7) Aos que pensam que os estudantes frequentemente adentram o ensino superior despreparados, uma informação: de fato, as escolas brasileiras não preparam seus estudantes para pensarem independentemente ou escreverem com competência crítica; ela mal é capaz de ensinar os conteúdos formais (isso, infelizmente, algumas vezes também ocorre na educação superior). É aí que entra o papel da educação como instrumento de inclusão: a universidade tem de se adaptar às necessidades de seus estudantes, e não os excluir por não estarem “prontos” para ser parte do gueto intelectual. E é justamente essa exclusão que se patrocina com a tradicional testagem de admissão (ENEM ou vestibulares).

8) Eu não preciso dizer que há formas menos excludentes de oportunizar a educação superior ou profissional para os cidadãos do que o humilhante ritual da testagem que vemos nos períodos de ENEM ou vestibulares. Mas, novamente, esse não é o interesse dos grupos dominantes e daqueles que compram sua retórica. Afinal, o que seria das economias de certas instituições sem as taxas do ENEM, vestibular e concursos? O que seria do ganho dos empresários da indústria dos “Pré-”tudo e daquelas escolas que anunciam que seus alunos foram aprovados na admissão à instituição tal? O que seria daqueles professores que ensinam aulas particulares para os candidatos a esses exames?… Há inúmeros motivos para que esses exames não sejam eliminados ou repensados – incluindo a justificativa excludente de que não há vagas para todos os que gostariam de estudar em instituições públicas (ou não há bolsas para os que queiram fazê-lo em instituições privadas), e por isso mesmo deve haver um instrumento de seleção. A educação, então, trabalha como canal de exclusão, segue a trilha oposta à sua própria ideia. Quem ou o que nos salvará?

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Filosofia para as vítimas da antifilosofia



Gibson da Costa

A vida etérea das “redes sociais” é a vida do marketing pessoal. Estamos todos numa vitrine na qual nos vendemos por meio das aparências. É a vida das edições de imagens, que impulsionam a [auto]massagem do ego na disputa pelos “likes” da “Rede Social” de todas as redes sociais. É a vida das imagens com citações descontextualizadas e, muitas vezes, apócrifas. Agora, a disputa e o conflito giram em torno de outra forma de poder: o poder da imagem autoconstruída dum “eu-mercadoria”, projetado, desenhado, manipulado, escrito pelo gosto e preferências alheias.

A coisa triste dessa baratização da humanidade digitalizada é que facilmente nos tornamos vítimas de falsos “filósofos”. E a “Rede Social” está repleta desses. Eles oferecem uma autoajuda barata que se vende como “filosófica”; uma autoajuda que oferece a “cura” para o deficit de “leitura” de nossa cultura: criam inimigos e heróis – os inimigos, claro, são todos aqueles de quem discordam e que deles discordam; os heróis são eles próprios, cercados por acólitos que repetem os refrões bélicos típicos de fanáticos!

E eu que sempre pensara que a criticidade fosse a base da filosofia! O julgar pela aparência, em minha compreensão, se afasta muito de qualquer noção filosófica de criticidade. Ou, como bem escreveu Roger Scruton (autor com quem nem sempre concordo): “os seres racionais não somente olham para as coisas, eles olham dentro das coisas”. Assim, qualquer “filósofo” que se venda como fonte de verdade única, enquanto condena todo e qualquer autor como se fosse mentiroso e, por isso, inferior a si, pratica qualquer coisa, menos filosofia!

A filosofia é inseparável do pensamento crítico, e este – de acordo com Hannah Arendt – faz com que tornemos “o outro” presente por meio da imaginação. Essa criticidade (ou “esclarecimento”) nos faria conhecer e considerar os pontos de vista de outras pessoas. E, assim, poderíamos analisar um objeto por todos os lados, a partir de diferentes perspectivas.

Proclamar anátemas não é filosofar; é, antes, dogmatizar. E a dogmatização é um instrumento utilíssimo para o marketing pessoal daqueles que se vendem como “gurus” da “filosofia” das redes sociais. Como o que proclamam é “a verdade”, e todos os outros são mentirosos, seus discípulos os veem como “autoridade” intelectual, moral, espiritual etc. Assim, uma nova geração de fanáticos é criada. O questionamento e o filosofar são assaltados. Defensores da violência, da tortura, do autoritarismo e da hierarquia são exaltados como baluartes da “esperança” – uma esperança vazia que já decepcionou inúmeros no passado e não falhará em decepcionar os acólitos desses falsos “filósofos” do presente.

Você não tem de acreditar em nada do que escrevo. Não quero nem preciso de seguidores. Apenas convido você, que lê essas palavras, a olhar para “dentro das coisas”, a analisar qualquer coisa a partir de diferentes perspectivas. Em outras palavras, convido você a filosofar!



Referências

ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

SCRUTON, Roger. Bebo, logo existo: guia de um filósofo para o vinho. Tradução Cristina Cupertino. São Paulo: Octavo, 2011.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Conferência "Edutopia 2016"

5 de novembro, sábado, 9h00: apresentarei palestra sobre o Ensino-aprendizagem de História Baseado na Abordagem Inquisitiva (isto é, na pesquisa feita pelo estudante).

Local: Auditório da Biblioteca da Teachers College, Universidade de Columbia.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Língua na escola: uma explicação de meu trabalho a pais, estudantes e colegas



Gibson da Costa

Porque um estudante, recentemente, pediu-me uma breve explicação de minha “didática” – com o que imagino que quisesse se referir a minhas perspectivas linguísticas e pedagógicas –, exponho brevemente, aqui, as compreensões linguísticas que trago à minha prática pedagógica e, consequentemente, às minhas abordagens em sala de aula.

O ensino de língua na escola, em minha compreensão e prática, fundamenta-se sobre três eixos básicos: a leitura, a produção textual (escrita) e a análise linguística. Os três se inter-relacionam, já que não podem, isoladamente, “dar conta” do desempenho linguístico esperado duma pessoa escolarizada.

As expectativas sociais relacionados ao ensino de língua na escola geralmente podem se resumir em ajudar os estudantes a ler e escreverbem”. Pessoalmente, entretanto, prefiro pensar que meu objetivo, enquanto professor de língua – mas também enquanto professor das humanidades –, seja o de facilitar a ampliação de competências linguísticas e outras dos (e pelos) alunos.

Em minha compreensão, não cabe apenas ao professor de língua a facilitação da ampliação de competências linguísticas. Tudo o que fazemos no meio educacional é linguístico; todos – estudantes e professores dos mais diferentes componentes curriculares –, afinal, dependemos da língua (em qualquer de suas formas) para a realização do processo de ensino-aprendizagem. Assim, professores de todos os diferentes componentes curriculares (as “matérias” escolares) são, de alguma forma, também professores de língua – por mais que não possuam formação linguística específica, que não percebam isso ou que não sejam vistos como tais.

Também é importante deixar claro que não enxergo o trabalho do professor como sinônimo de um simples “ensinador” – se com o verbo “ensinar” refira-se a alguém que despeje seu conhecimento sobre mentes vazias e incompetentes. Não. O trabalho do professor, em minha compreensão, é o de facilitar a ampliação daquelas habilidades e competências que os estudantes trazem para a escola. Ou seja, aquilo que chamamos de “ensinonão consiste em “transmitir” ou “transferir” informações aos estudantes (como se os estudantes não passassem de antenas); mas, sim, em ajudar os estudantes a ampliarem o conhecimento que já têm do mundo – no caso específico da língua, a ampliarem sua compreensão, conhecimento e uso em função, por exemplo, dos diferentes contextos nos quais podem se encontrar em suas relações sociais.

O ensino linguístico – assim como o ensino de qualquer outro campo escolar – pode oferecer um caminho de libertação intelectual ou, contrariamente, um caminho de prisão a tradições que rejeitam todo o conjunto de conhecimentos que se têm desenvolvido nos últimos séculos. O ensino de língua, talvez mais do que qualquer outro campo, tem sido – muitas vezes – um território onde velhos preconceitos culturais e sociais insistem em permanecer no meio escolar. Assim, muitas vezes, o autoritarismo hierárquico se esconde por trás duma visão de “gramática” que rejeita, por exemplo, pesquisas linguísticas e psicológicas sobre o fenômeno linguístico; se esconde por trás duma visão do que seja “literatura” que rejeita estudos acadêmicos sobre o fazer literário.

A escola, em minha visão, é o ambiente onde o conhecimento não especializado do estudante deve se encontrar e ser alargado pelo conhecimento especializado do campo de dado componente curricular. Assim, seu conhecimento e uso da língua, e o conhecimento não especializado dito “tradicional” (aquele que, por exemplo, dita ao estudante o que é linguisticamente/gramaticalmente “certo” ou “errado”) que ele herda de seu meio sociocultural, deve ser ampliado pelo conhecimento especializado que será adaptado pelo professor à comunidade de estudantes da Educação Básica (Ensinos Fundamental e Médio).

E é exatamente isso – a ampliação de habilidades e competências – que intenciono com as atividades que frequentemente proponho aos estudantes. Em minha visão e experiência, é mais interessante e recompensador para os estudantes aprenderem a usar a chamada variedade culta da língua defendendo seu ponto de vista pessoal sobre um problema real num texto dissertativo-argumentativo do que fazerem exercícios de análise sintática em sala de aula. Afinal de contas, queremos usuários competentes da língua ou queremos formar, nos Ensinos Fundamental e Médio, professores de gramática prescritiva/normativa?

Ficarei deveras feliz se souber que um ex-estudante foi capaz, após ter terminado a Educação Básica, de compreender um contrato, escrever uma solicitação a um órgão público, falar ao telefone com um cliente, convencer um ouvinte, utilizar suas competências linguísticas para adentrar o universo acadêmico ou profissional. Esse é o “sonho” de qualquer professor com minha formação e experiência. Não ensino língua, na Educação Básica, para que os estudantes saibam dar nomes a cada uma das classes de palavras ou a todas as classificações verbais possíveis – esse é um tipo de conhecimento que espero de mim mesmo, como professor, e não dos estudantes.

Minha prática em sala de aula, obviamente, está condicionada por minha formação intelectual e profissional multifacetada. Também possuo formação e atuo em outras áreas de conhecimento. E todas elas se intercruzam quando ensino Língua ou Literatura. A História, as Ciências Sociais, a Teologia, a Filosofia, a Psicologia e a Geografia frequentemente adentram minhas “aulas” de Língua e Literatura. Minha formação não me permite abordar os componentes curriculares escolares – as “matérias” escolares – como campos isolados uns dos outros. Seu isolamento só pode existir nos pequenos compartimentos mentais que somos treinados a construir na escola. Eu me recuso a facilitar a construção de tais compartimentos em minha relação com os estudantes.

Essa é a razão por que debates, pesquisas e textos dos mais variados gêneros são e continuarão a fazer parte de nossas aulas. Não sou adestrador de animais domésticos; sou professor de seres humanos. Não esperem que eu adestre seres humanos: eu apenas tento facilitar seu caminho rumo à autonomia que deve marcar o ser humano!

domingo, 7 de agosto de 2016

Ainda sobre o "Escola Sem Partido": resposta a uma colega professora


Gibson da Costa


Cara Sandra,

Como você já pode imaginar, discordo frontalmente de sua opinião. E permita-me expor minhas razões.

Projetos de Lei como esse do ESP não representam uma “solução” para a educação brasileira. Em primeiro lugar, o uso que você faz do termo “solução” implica que haja um “problema”, mas você não identificou a que problema se referia. Em segundo lugar, mesmo que eu acreditasse que houvesse um problema “fundamental” com a educação, lei alguma poderia dar conta de todos os problemas que possam haver numa determinada área da vida social, como a educação.

Trata-se, na verdade, duma questão de visões distintas de mundo e, mais especificamente, do que significa ser um humano. Por exemplo, ao tratar professores como “manipuladores”, o discurso do ESP explicita sua visão dos estudantes: seres passivos, não reflexivos, que são “manipuláveis” – ou seja, não têm nem um pensamento próprio, nem responsabilidade para com suas próprias escolhas. Assim, para mim, o ESP só reforça um problema real que existe na sociedade brasileira como um todo e que, obviamente, se reproduz na escola. O nome desse problema é: AUTORITARISMO.

Voltemos ao art. 2º, inciso III, do Projeto de Lei nº 193/2016 do Senador Magno Malta – ou dos projetos assinados, com o mesmo texto, por diferentes vereadores, deputados estaduais e federais. Nele, se estabelece o princípio da “liberdade de aprender e de ensinar”. Agora, compare isso ao art. 3º, inciso II, da LDB (Lei nº 9394/1996), que, por sua vez, estabelece como princípio a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. A diferença, que é explícita, chega a representar uma “violência simbólica”: a liberdade proposta pelo ESP é apenas a “liberdade” de receber e de transmitir “conteúdos” (na realidade, poderíamos até mesmo discutir as noções de “liberdade” e de “conteúdo” que se escondem por trás dos projetos de lei e dos discursos dos partidários do ESP).

O que o ESP propõe é “desintelectualização” do ensino e da aprendizagem – e, consequentemente, sua desumanização. Sua visão não é de um professor pesquisador, autor, pensador. O professor do ESP é um mero transmissor de “conteúdos”. Ele recebe uma informação pronta e acabada de alguém que esteja numa posição hierárquica superior – os autores de livros didáticos (livros esses utopicamente higienizados de traços ideológicos com os quais os ESPistas discordam) ou sei lá mais quem! – e os transmite aos seus alunos.

Os alunos, por sua vez, são apenas receptores nessa cadeia transmissora de informações empacotadas. Eles são meros produtos duma tradição. Devem conhecer e seguir as regras, as normas, os ditos, o “certo”. Por isso, para os adeptos e defensores dessa visão diminuta da humanidade, ensinar e aprender limita-se a transmitir e memorizar fatos – sem crítica, sem questionamentos, sem provocações. Se pudessem, se desfariam de todos os professores e fabricariam o “mestre novo”: a máquina que conhece seu lugar (como retransmissor duma tradição construída para silenciar o lugar do ser humano) e sabe colocar o estudante em seu próprio lugar (como humano submisso à hierarquia dos que sabem mais do que ele e do que seus professores – a hierarquia autora do próprio ESP).

Assim, a deseducação proposta pelo ESP é aquela levada a cabo por um professor que não provoca. O aluno que o ESP quer produzir é aquele que não discorda (na verdade, só discorda se o professor for uma dessas criaturas etéreas que os apoiadores do projeto chamam de “esquerdista” ou “comunista” – e que seria todo aquele que discorda da visão de mundo proposta pelo ESP). Tudo segue o rito estabelecido na cartilha da hierarquia autoritária: uns falam, outros ouvem; uns mandam, outros obedecem!

Essa é a “solução” proposta pela ideologia do Escola Sem Partido! A “solução final” para a educação brasileira!

Você se refere a um “filósofo” que apoia o movimento. Como um “filósofo” pode apoiar o não questionamento? Ninguém que apoie a criminalização da expressão de ideias e conceitos pode ser tomado como “filósofo”. É, no máximo, uma fraude com um bom trabalho de marketing! Ele pode ser aplaudido por sua audiência, admiradora dos termos sofisticados e das assombrosas referências que faz aos “comunistas” (termo genérico aplicado a qualquer um que discorde de sua visão de mundo) ou, quando tenta ser mais elegante, aos “socialistas fabianos”, mas o que é sua mensagem além de um apelo ao autoritarismo ideológico?!

A propósito, uma maneira de selecionar o que escutamos – o que, em si, é uma atividade intelectual – é justamente sabermos quem nos fala. Quais são as ideias que essa pessoa defende? O que essa pessoa faz? Como ela ganha a vida? Por que ela diz o que diz? Quem apoia o que essa pessoa faz? Quem ela mesma apoia?

Por exemplo, não é curioso que os autores e defensores desses projetos de lei patrocinados pelo ESP – incluindo o citado “filósofo” – não incluam professores? Como essas leis se dirigem a professores da Educação Básica, seria razoável esperar que entre seus autores e apoiadores houvesse professores da Educação Básica (as pessoas que têm formação, conhecem a vida escolar, a atuam na sala de aula regular). Mas, não há. E o “filósofo” que você cita não é professor do ensino regular – nem no Brasil, nem onde vive!

Posso deixar claro o que penso que você deve saber a meu respeito:

Sou um professor. Ensino na Educação Básica e Superior. Não estou ligado a políticos. Não trabalho para partidos políticos ou candidatos políticos. Mas, obviamente, abraço um conjunto de ideias filosóficas que moldam minha visão política.

Acredito na liberdade de opinião e de expressão de opinião, e a defendo em minha prática. Minhas crenças filosóficas, religiosas e políticas, e minhas perspectivas teóricas, não são impostas a meus alunos e alunas como a única opção aceitável; mas elas, obviamente, estão presentes em tudo o que faço. E isso ocorre porque sou um ser humano, e não uma máquina. Por mais que queira e me esforce para manter um ambiente de abertura na sala de aula, ainda sou um indivíduo – ou, se preferir, um “sujeito histórico” –, o que implica que estou condicionado pelo que conheço e experiencio do e no mundo. E é exatamente por isso que considero a exigência duma suposta “neutralidade” como uma aberração irracional.

Nunca neguei que, de fato, houvesse professores que faziam apologias partidárias em sala de aula. Há professores que o fazem. Há professores que impõem sua compreensão filosófica como a única aceitável, correta, certa. Mas esses professores são uma minoria. E os que o fazem, são partidários das mais diferentes visões políticas; coletivamente, (possivelmente) sofrem de uma formação deficitária, e, individualmente, de um deficit ético. O problema na formação desses professores é o mesmo presente nas propostas do ESP: a visão da educação como um instituto autoritário, no qual o professor é um (re)transmissor e o estudante é um receptor.

Contudo, reconhecer que haja professores que “imponham” uma única visão da realidade social a seus alunos não é equivalente a dizer que esses estudantes sejam “manipulados”. Eles, em sua maioria, não o são. E não o são porque pessoas psicologicamente saudáveis não são “manipuláveis” como marionetes. Os estudantes não chegam à escola como tábulas rasas. Eles conseguem compreender o mundo ao seu redor. A eles podem faltar conceitos sofisticados e um conhecimento da “gramática teórica”, mas, ainda assim, são capazes de legitimar ou deslegitimar discursos. Negar isso, dizendo que os estudantes são “manipulados” pelos professores, é negar sua humanidade e sua capacidade de autonomia.

Então, se quer uma sugestão minha para lidar com as questões levantadas pelo ESP, talvez devêssemos começar por fazer um pacto – os professores, os pais, a escola, as autoridades educacionais, o ESP, o Poder Legislativo etc – pela autonomia do estudante. Os estudantes não são ratos de laboratório; são seres humanos e, assim, podem entender muito mais do que os legisladores e seus apoiadores conseguem imaginar. E nós, professores, já sabemos disso há muito tempo. Já está mais do que na hora de pôr o que sabemos sobre aprendizagem, sobre o desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes em nossa própria prática. Sejamos plenamente honestos com nossos estudantes: ESP, confesse aos jovens estudantes suas intenções autoritárias! Professores “manipuladores”, confessem aos seus alunos de onde saíram suas visões de mundo!... Verdadeiros professores: façamos nosso trabalho – é um direito de nossos estudantes!

segunda-feira, 18 de julho de 2016

“Escola Sem Partido”: A vitrine da ignorância e da irreflexão teórica


Gibson da Costa


Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 193, de 2016, de autoria do Senador Magno Malta*, do Partido da República, pelo Estado do Espírito Santo. O Projeto de Lei trata do já conhecido programa “Escola Sem Partido” que tem seus apaixonados defensores nas ditas redes sociais. Aqui, gostaria de, brevemente, tecer alguns comentários sobre o tal projeto legislativo.

Para compreender minhas observações sobre o projeto, você pode acompanhar as informações disponibilizadas na página da Consulta Pública do mesmo, onde estão disponíveis tanto o texto do PL quanto as informações acerca de sua tramitação no Senado. O endereço é o seguinte: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666

Em seu artigo 2º, enumeram-se os princípios que deveriam ser seguidos pela “educação nacional”. Este artigo trata-se, na verdade, duma reescrita do art. 3º da Lei nº 9.394/1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (a [des]conhecida LDB), que trata igualmente dos princípios que devem reger o ensino no país. As diferenças entre a lei vigente e a proposta são explicitadas já neste segundo artigo do Projeto de Lei. Para que as diferenças fiquem claras para você, exibirei, lado a lado, os dois artigos correspondentes – o artigo 3º da LDB e o artigo 2º do projeto aqui discutido.




O Projeto de Lei, no artigo 2º, inciso I, estabelece como um dos princípios reguladores da “educação nacional” a “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. O enunciado é jurídica e teoricamente absurdo. Em primeiro lugar, uma lei qualquer não pode estabelecer princípios para o Estado – só a Constituição Federal pode fazê-lo. O inciso em questão não estabelece “neutralidade” para a educação, mas sim para o “Estado”. Trata-se, assim, duma aparente inconstitucionalidade! Apesar de eu poder supor o que se pretendia nesse inciso I, sua redação é absurda, assim como o é a compreensão que se esconde por trás daquelas palavras.

Mesmo sendo contrário ao partidarismo eleitoral por parte de professores (isto é, de transformar as salas de aula em palanques eleitorais, como, de fato, muitas vezes ocorre), é impossível esperar “neutralidade política” e “ideológica” absoluta na educação – seja por parte do Estado, dos estabelecimentos ou dos professores. Assim, o conteúdo desse inciso I contradiz, em parte, os conteúdos dos incisos II, III e IV seguintes, que estabelecem o “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”, a “liberdade de aprender e de ensinar”, e a “liberdade de consciência e de crença”. Ora, “pluralismo” e “liberdade”, em si, são princípios políticos e ideológicos; logo, se deve haver pluralismo e liberdade na sala de aula, haverá a imposição – no fazer pedagógico – de perspectivas políticas: as perspectivas do pluralismo e da liberdade! Entende a contradição?... Assim, é absurdo falar em “neutralidade”!

A “neutralidade” é uma exigência incoerente e absurda em qualquer atividade que se julgue intelectual ou científica. Quando aprendemos, ensinamos, pesquisamos e divulgamos conhecimento, o fazemos a partir de pressupostos, princípios, modelos, métodos, teorias específicos. E esses são todos baseados em ideologias. Essas ideologias são sistemas ideários que servem de base e alicerce para as diferentes formas de “ver” o mundo; elas servem de base para as compreensões científicas, sociais, culturais e políticas que moldam aquilo que chamamos de “educação” – assim como servem de base para o próprio Projeto de Lei comentado aqui. A inclusão desse requisito numa lei – isto é, o uso do termo “neutralidade” – só mostra o quão teoricamente desinformados estão seus autores e patrocinadores, e quão incoerentes são suas expectativas.

É interessante, ainda, observar as prioridades da proposta. Se compararmos o artigo 3º da LDB com o artigo 2º do Projeto de Lei em questão, veremos que não há real preocupação com “pluralismo” e “liberdade” no projeto (contrariamente, essa preocupação está muito explícita nos incisos I a IV, do art. 3º da LDB). Há, sim, uma explícita preocupação com temas referentes à sexualidade (leia o parágrafo único), e, implicitamente, uma preocupação com o trato de religiosidades discordantes do Cristianismo (leia o inciso VII, e tenha em mente os vários incidentes de protesto contra a discussão de religiões ditas “afro-brasileiras” e o próprio contexto e história do Senador que assina o projeto).

Leia todo o Projeto de Lei e perceberá que o que o mesmo faz é, na verdade, redefinir os conceitos de “pluralismo” e de “liberdade”!

O parágrafo único do art. 2º do Projeto de Lei é ainda mais risível do que os incisos que o precedem:

O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.

O que se lê por trás desse absurdo teórico é que podemos manipular a orientação emociono-sexual (chamada acima de “opção sexual”) de nossos alunos. Além de cometer o equívoco comum de se reduzir os aspectos relacionais entre emoção e sexualidade a apenas uma mecânica sexual, o texto da lei proposta define categoricamente esses aspectos como sendo uma “opção sexual”, o que, mais uma vez, contradiz o texto da própria proposta. Se a sexualidade humana resume-se a uma questão de “opção”, logo, não importaria “a identidade biológica do sexo”, já que se poderia, de qualquer forma, escolher sua sexualidade! Conhecendo as ideias que o Senador Magno Malta já explicitou em suas falas públicas sobre o tema, torna-se fácil perceber a confusão feita entre aquilo que chamei de “orientação emociono-sexual” e o de identidade de gênero.

Ademais, o que se quer dizer por “sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”? A que “teoria de gênero” o texto se refere? À teoria utilizada pelo autor na escrita de seu Projeto de Lei? Ou se refere à teoria de gênero utilizada pelos professores de língua e literatura? Novamente, o uso duma noção tão ampla contradiz o “especialmente” do trecho citado – como pode-se vetar “especialmente” algo que não fica especificado? O conhecimento teórico do autor é tão baixo que ele se vê obrigado a utilizar a expressão “teoria ou ideologia de gênero”. [Ele não possui nenhum assessor com treinamento acadêmico suficiente para auxiliá-lo no uso duma linguagem apropriada?]

Mas ainda pior do que o texto do Projeto de Lei é o texto da Justificativa. Nela, o ilustre Senador se contradiz de forma explícita, em sua discussão de diferentes “liberdades”. Ademais, oferece a seguinte pérola doutrinária (na justificativa nº 4):

Liberdade de ensinar – assegurada pelo art. 206, II, da Constituição Federal – não se confunde com a liberdade de expressão. Não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa;


O autor, aparentemente, não aprendeu que, de acordo com os princípios constitucionais do ensino (estabelecidos no art. 206 da Constituição Federal, que ele mesmo cita) e com o histórico do ordenamento jurídico brasileiro, os professores possuem a chamada “liberdade de cátedra” – ou seja, podem “livremente exteriorizar seus ensinamentos aos alunos, sem qualquer ingerência administrativa, ressalvada, porém, a possibilidade da fixação do currículo escolar pelo órgão competente” (MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 21.ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 786-787). Então, sim, a liberdade de ensinar se confunde com a liberdade de expressão – ao menos de acordo com a história jurídica brasileira desde, pelo menos, a Constituição Federal de 1934, que, em no artigo 155, declarava “É garantida a liberdade de cátedra”. A Constituição Federal de 1946 declara o mesmo, no art. 168, inciso VII; o que novamente repete-se na Constituição de 1967, art. 168, parágrafo 3º, inciso VI.

A Constituição Federal atual (1988), por sua vez, apesar de não prever explicitamente a “liberdade de cátedra”, implicitamente a inclui no texto do inciso IX do art. 5º, que declara que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Ou seja: sim, a liberdade de ensinar se confunde com a liberdade de expressão – e a declaração do Senador, em sua justificativa, é embaraçosamente equivocada. A liberdade de expressão do professor pode não ser absoluta, obviamente, mas – num Estado Democrático de Direito, como o é a República Federativa do Brasil – é parte indissociável do ofício docente.

Por essas e outras razões, às quais não posso me deter agora, afirmo que esse Projeto de Lei, assim como todo o movimento que lhe serve de base, é uma vitrine da ignorância e da irreflexão teórica que só cria entraves para a verdadeira liberdade e pluralidade de ideias – seja na sociedade como um todo, na vida do indivíduo, ou nas escolas, mais especificamente.

Diga NÃO ao Projeto de Lei nº 193/2016!!!


*NOTA: Apesar de eu tratar o Senador Magno Malta, aqui, como autor do Projeto de Lei, o texto não é de sua autoria. Trata-se do mesmo texto apresentado em outros projetos estaduais e municipais em várias partes do Brasil. Vide o sítio do "Projeto Escola Sem Partido".