domingo, 17 de janeiro de 2016

Currículo, autonomia e a escola que quero para minhas classes em 2016


Gibson da Costa

Escolho não participar das disputas medíocres que emergiram na grande mídia e nas redes sociais sobre as propostas da BNCC – a Base Nacional Comum Curricular –, especialmente no que concerne às minhas áreas de ensino na Educação Básica. Contudo, como um professor veterano – diferentemente dos “especialistas” que nunca puseram um pé na sala de aula como professores da Educação Básica –, gostaria de fazer algumas observações pessoais:

Enquanto uma padronização curricular nacional seja, até certo ponto, desejável, a mesma não é suficiente para resolver os problemas enfrentados na Educação Básica brasileira. Mais uma vez, parece que não se consegue sair das velhas disputas sobre “o que ensinar”, quando o desafio, na vida real da sala de aula, é muito mais complexo do que isso.

Mais do que sugerir a inclusão ou exclusão de temas nos conteúdos curriculares, o que precisamos é pensar nos atores principais do processo educativo formal: os/as estudantes. E pensar nesses atores significa considerar seus próprios interesses no que tange à sua formação; significa conceder-lhes um certo grau de autonomia, de acordo com sua capacidade cognitiva, para que escolham, dentre certas opções, o que querem aprender.

Ora, o problema é que a educação ainda é pensada a partir de perspectivas hierárquicas, corporativistas e autoritárias – desde a educação infantil até a superior. Os próprios professores são treinados para atuar nesse molde, tendo muita dificuldade de enxergar seu fazer fora dum eixo vertical de cima para baixo. Isso se explicita na própria formação docente, por exemplo (os professores não são formados para ensinar em “áreas”, mas em “componentes” individuais), e no modus operandi da escola.

Sempre fico muito perturbado com a forma como tão facilmente as ideias atreladas ao currículo são dissociadas da forma como as relações são construídas na escola. Pare e pense, por exemplo, no que muitos de nós – se não a maioria – fazemos enquanto ensinamos sobre autoritarismo, por exemplo, nas (talvez equivocadamente) chamadas Ciências Humanas. Tratamos sobre questões referentes à liberdade de expressão e censura, democracia e ditadura etc, num ambiente cuja arquitetura nos torna [os professores, isto é] o centro do processo – afinal os assentos dos estudantes se dirigem a nós, e espera-se que todos eles olhem para nossa direção, como evidência de sua submissão à nossa autoridade –; num ambiente no qual, muitas vezes, a discordância e o inconformismo são interpretados, por nós, como sinônimo de “desrespeito”; num ambiente no qual a fala autoritária do professor é vista como ensino, mas o questionamento do estudante não é visto como aprendizado; um ambiente no qual o estudante é obrigado a “estudar” tudo o que os legisladores e “especialistas” lhes impuseram, independentemente de seus interesses; num ambiente no qual os resultados que realmente importam são expressos em notas alcançadas numa prova.

Esses são pontos que deveriam ser discutidos em qualquer tentativa de reforma curricular – considerando que “currículo” seja muito mais do que apenas “conteúdos”.

Sim, obviamente sei que minhas perspectivas e expectativas resultam de minha formação numa cultura escolar estranha àquela experienciada pela maioria de meus colegas e concidadãos brasileiros. Mas é justamente minha experiência pessoal, tanto como estudante quanto como professor, que me faz crer e confiar firmemente no papel da autonomia na educação. Há algo de deficiente nas expectativas do sistema escolar quando o estudante é controlado durante toda a sua vida e, repentinamente – se e quando tiver a oportunidade de alcançar a Educação Superior –, tem de encarar escolhas por si só (supondo que, de fato, as faça); ou tem de fazê-las em sua vida profissional ou mesmo emotiva. Como nunca pôde escolher nada de impactante em sua vida, como os componentes que estudaria na escola, por exemplo, como pode ter desenvolvido maturidade suficiente para lidar com as escolhas da vida adulta?

Todos esperamos que os jovens e adultos sejam capazes de articular seus pensamentos de forma inteligível, mas como o poderiam fazer se passaram a infância e a adolescência sendo censurados inclusive por aqueles que deveriam tê-los ajudado a desenvolver suas habilidades discursivas? Como poderiam ser adultos autoconfiantes quando passaram sua infância e adolescência sendo tratados como incapazes e subalternos?… Você pensa que a escola não faz isso com os estudantes? Pois é exatamente isso que faz quando não reconhece seu direito à autonomia!

Então, querem uma reforma curricular? Comecem por dar responsabilidades aos estudantes quanto à sua própria formação, de acordo com suas capacidades, além de reconhecer seu direito à criatividade, ao erro, à tentativa… Diminuam os componentes curriculares obrigatórios na Educação Básica; criem componentes optativos; mudem a forma de organização física das salas de aula; acabem com a absurda indústria da metrificação da aprendizagem; formem professores que possam atuar em áreas de saber e não apenas em componentes isolados, que sejam também autônomos, ao mesmo tempo em que tenham competência para colaborar.

Obviamente, a melhora nas condições de trabalho (inclusive de pagamentos e benefícios) dos professores é também importante, mas a experiência demonstra que isso não é suficiente. Assim como não são as decisões burocráticas acerca do currículo. Melhorar as condições e os resultados da educação escolar exige ações muito mais amplas!