Gibson
da Costa
Tramita
no Senado Federal o Projeto de Lei nº 193, de 2016, de
autoria do Senador Magno Malta*, do Partido da República, pelo
Estado do Espírito Santo. O Projeto de Lei trata do já conhecido
programa “Escola Sem Partido” que tem seus apaixonados defensores
nas ditas redes sociais. Aqui, gostaria de, brevemente, tecer alguns
comentários sobre o tal projeto legislativo.
Para
compreender minhas observações sobre o projeto, você pode
acompanhar as informações disponibilizadas na página da Consulta
Pública do mesmo, onde estão disponíveis tanto o texto do PL
quanto as informações acerca de sua tramitação no Senado. O
endereço é o seguinte:
https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666
Em
seu artigo 2º, enumeram-se os princípios que deveriam ser
seguidos pela “educação nacional”. Este artigo trata-se, na
verdade, duma reescrita do art. 3º da Lei
nº 9.394/1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (a [des]conhecida LDB), que trata igualmente dos
princípios que devem reger o ensino no país. As diferenças entre a
lei vigente e a proposta são explicitadas já neste segundo artigo
do Projeto de Lei. Para que as diferenças fiquem claras para você,
exibirei, lado a lado, os dois artigos correspondentes – o artigo
3º da LDB e o artigo 2º do projeto aqui discutido.
O
Projeto de Lei, no artigo 2º, inciso I, estabelece como um dos
princípios reguladores da “educação nacional” a “neutralidade
política, ideológica e religiosa do Estado”. O enunciado é
jurídica e teoricamente absurdo. Em primeiro lugar, uma lei qualquer
não pode estabelecer princípios para o Estado – só a
Constituição Federal pode fazê-lo. O inciso em questão não
estabelece “neutralidade” para a educação, mas sim para o
“Estado”. Trata-se, assim, duma aparente inconstitucionalidade!
Apesar de eu poder supor o que se pretendia nesse inciso I, sua
redação é absurda, assim como o é a compreensão que se esconde
por trás daquelas palavras.
Mesmo
sendo contrário ao partidarismo eleitoral por parte de professores
(isto é, de transformar as salas de aula em palanques eleitorais,
como, de fato, muitas vezes ocorre), é impossível esperar
“neutralidade política” e “ideológica”
absoluta na educação – seja por parte do Estado, dos
estabelecimentos ou dos professores. Assim, o conteúdo desse inciso
I contradiz, em parte, os conteúdos dos incisos
II, III e IV seguintes, que estabelecem o
“pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”, a
“liberdade de aprender e de ensinar”, e a “liberdade
de consciência e de crença”. Ora, “pluralismo” e
“liberdade”, em si, são princípios políticos e ideológicos;
logo, se deve haver pluralismo e liberdade na sala de aula, haverá a
imposição – no fazer pedagógico – de perspectivas políticas:
as perspectivas do pluralismo e da liberdade! Entende a
contradição?... Assim, é absurdo falar em “neutralidade”!
A
“neutralidade” é uma exigência incoerente e absurda em
qualquer atividade que se julgue intelectual ou científica. Quando
aprendemos, ensinamos, pesquisamos e divulgamos conhecimento, o
fazemos a partir de pressupostos, princípios, modelos, métodos,
teorias específicos. E esses são todos baseados em ideologias.
Essas ideologias são sistemas ideários que servem de base e
alicerce para as diferentes formas de “ver” o mundo; elas servem
de base para as compreensões científicas, sociais, culturais e
políticas que moldam aquilo que chamamos de “educação” –
assim como servem de base para o próprio Projeto de Lei comentado
aqui. A inclusão desse requisito numa lei – isto é, o uso do
termo “neutralidade” – só mostra o quão teoricamente
desinformados estão seus autores e patrocinadores, e quão
incoerentes são suas expectativas.
É
interessante, ainda, observar as prioridades da proposta. Se
compararmos o artigo 3º da LDB com o artigo 2º do Projeto de Lei em
questão, veremos que não há real preocupação com “pluralismo”
e “liberdade” no projeto (contrariamente, essa preocupação está
muito explícita nos incisos I a IV, do art. 3º da LDB). Há, sim,
uma explícita preocupação com temas referentes à sexualidade
(leia o parágrafo único), e, implicitamente, uma preocupação com
o trato de religiosidades discordantes do Cristianismo (leia o inciso
VII, e tenha em mente os vários incidentes de protesto contra a
discussão de religiões ditas “afro-brasileiras” e o próprio
contexto e história do Senador que assina o projeto).
Leia
todo o Projeto de Lei e perceberá que o que o mesmo faz é, na
verdade, redefinir os conceitos de “pluralismo” e de “liberdade”!
O
parágrafo único do art. 2º do Projeto de Lei é
ainda mais risível do que os incisos que o precedem:
O Poder Público não se
imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer
prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural
amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia
com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada,
especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de
gênero.
O
que se lê por trás desse absurdo teórico é que podemos manipular
a orientação emociono-sexual (chamada acima de “opção sexual”)
de nossos alunos. Além de cometer o equívoco comum de se reduzir os
aspectos relacionais entre emoção e sexualidade a apenas uma
mecânica sexual, o texto da lei proposta define categoricamente
esses aspectos como sendo uma “opção sexual”, o que, mais uma
vez, contradiz o texto da própria proposta. Se a sexualidade humana
resume-se a uma questão de “opção”, logo, não importaria “a
identidade biológica do sexo”, já que se poderia, de qualquer
forma, escolher sua sexualidade! Conhecendo as ideias que o Senador
Magno Malta já explicitou em suas falas públicas sobre o tema,
torna-se fácil perceber a confusão feita entre aquilo que chamei de
“orientação emociono-sexual” e o de identidade de gênero.
Ademais,
o que se quer dizer por “sendo vedada, especialmente, a aplicação
dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”? A que “teoria
de gênero” o texto se refere? À teoria utilizada pelo autor na
escrita de seu Projeto de Lei? Ou se refere à teoria de gênero
utilizada pelos professores de língua e literatura? Novamente, o uso
duma noção tão ampla contradiz o “especialmente” do trecho
citado – como pode-se vetar “especialmente” algo que não fica
especificado? O conhecimento teórico do autor é tão baixo que ele
se vê obrigado a utilizar a expressão “teoria ou ideologia de
gênero”. [Ele não possui nenhum assessor com treinamento
acadêmico suficiente para auxiliá-lo no uso duma linguagem
apropriada?]
Mas
ainda pior do que o texto do Projeto de Lei é o texto da
Justificativa. Nela, o ilustre Senador se contradiz de forma
explícita, em sua discussão de diferentes “liberdades”.
Ademais, oferece a seguinte pérola doutrinária (na justificativa nº
4):
Liberdade de ensinar –
assegurada pelo art. 206, II, da Constituição Federal – não se
confunde com a liberdade de expressão. Não existe liberdade de
expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de
ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes,
que formam, em sala de aula, uma audiência cativa;
O
autor, aparentemente, não aprendeu que, de acordo com os princípios
constitucionais do ensino (estabelecidos no art. 206 da Constituição
Federal, que ele mesmo cita) e com o histórico do ordenamento
jurídico brasileiro, os professores possuem a chamada “liberdade
de cátedra” – ou seja, podem “livremente exteriorizar seus
ensinamentos aos alunos, sem qualquer ingerência administrativa,
ressalvada, porém, a possibilidade da fixação do currículo
escolar pelo órgão competente” (MORAES, Alexandre. Direito
Constitucional. 21.ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 786-787).
Então, sim, a liberdade de ensinar se confunde com a liberdade de
expressão – ao menos de acordo com a história jurídica
brasileira desde, pelo menos, a Constituição Federal de 1934,
que, em no artigo 155, declarava “É
garantida a liberdade de cátedra”. A Constituição Federal de
1946 declara o mesmo, no art. 168, inciso VII; o que
novamente repete-se na Constituição de 1967, art. 168, parágrafo
3º, inciso VI.
A
Constituição Federal atual (1988), por sua vez, apesar de não
prever explicitamente a “liberdade de cátedra”, implicitamente a
inclui no texto do inciso IX do art. 5º, que declara que “é
livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica
e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Ou seja: sim, a liberdade de ensinar se confunde com a liberdade de
expressão – e a declaração do Senador, em sua justificativa, é
embaraçosamente equivocada. A liberdade de expressão do professor
pode não ser absoluta, obviamente, mas – num Estado Democrático
de Direito, como o é a República Federativa do Brasil – é parte
indissociável do ofício docente.
Por
essas e outras razões, às quais não posso me deter agora, afirmo
que esse Projeto de Lei, assim como todo o movimento que lhe serve de
base, é uma vitrine da ignorância e da irreflexão teórica que só
cria entraves para a verdadeira liberdade e pluralidade de ideias –
seja na sociedade como um todo, na vida do indivíduo, ou nas escolas,
mais especificamente.
Diga
NÃO ao Projeto de Lei nº 193/2016!!!
*NOTA: Apesar de eu tratar o Senador Magno Malta, aqui, como autor do Projeto de Lei, o texto não é de sua autoria. Trata-se do mesmo texto apresentado em outros projetos estaduais e municipais em várias partes do Brasil. Vide o sítio do "Projeto Escola Sem Partido".
*NOTA: Apesar de eu tratar o Senador Magno Malta, aqui, como autor do Projeto de Lei, o texto não é de sua autoria. Trata-se do mesmo texto apresentado em outros projetos estaduais e municipais em várias partes do Brasil. Vide o sítio do "Projeto Escola Sem Partido".
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