Gibson
da Costa
Cara
Sandra,
Como
você já pode imaginar, discordo frontalmente de sua opinião. E
permita-me expor minhas razões.
Projetos
de Lei como esse do ESP não representam uma “solução” para a
educação brasileira. Em primeiro lugar, o uso que você faz do
termo “solução” implica que haja um “problema”, mas você
não identificou a que problema se referia. Em segundo lugar, mesmo
que eu acreditasse que houvesse um problema “fundamental” com a
educação, lei alguma poderia dar conta de todos os problemas que
possam haver numa determinada área da vida social, como a educação.
Trata-se,
na verdade, duma questão de visões distintas de mundo e, mais
especificamente, do que significa ser um humano. Por exemplo, ao
tratar professores como “manipuladores”, o discurso do ESP
explicita sua visão dos estudantes: seres passivos, não
reflexivos, que são “manipuláveis” – ou seja, não têm nem
um pensamento próprio, nem responsabilidade para com suas próprias
escolhas. Assim, para mim, o ESP só reforça um problema real que
existe na sociedade brasileira como um todo e que, obviamente, se
reproduz na escola. O nome desse problema é: AUTORITARISMO.
Voltemos
ao art. 2º, inciso III, do Projeto de Lei nº 193/2016 do
Senador Magno Malta – ou dos projetos assinados, com o mesmo texto,
por diferentes vereadores, deputados estaduais e federais. Nele, se
estabelece o princípio da “liberdade de aprender e de
ensinar”. Agora, compare isso ao art. 3º, inciso
II, da LDB (Lei nº 9394/1996), que, por sua vez, estabelece como
princípio a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e
divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. A
diferença, que é explícita, chega a representar uma “violência
simbólica”: a liberdade proposta pelo ESP é apenas a “liberdade”
de receber e de transmitir “conteúdos” (na realidade, poderíamos
até mesmo discutir as noções de “liberdade” e de “conteúdo”
que se escondem por trás dos projetos de lei e dos discursos dos
partidários do ESP).
O
que o ESP propõe é “desintelectualização” do
ensino e da aprendizagem – e, consequentemente, sua desumanização.
Sua visão não é de um professor pesquisador, autor, pensador. O
professor do ESP é um mero transmissor de “conteúdos”. Ele
recebe uma informação pronta e acabada de alguém que esteja numa
posição hierárquica superior – os autores de livros didáticos
(livros esses utopicamente higienizados de traços ideológicos com
os quais os ESPistas discordam) ou sei lá mais quem! – e os
transmite aos seus alunos.
Os
alunos, por sua vez, são apenas receptores nessa cadeia transmissora
de informações empacotadas. Eles são meros produtos duma tradição.
Devem conhecer e seguir as regras, as normas, os ditos, o “certo”.
Por isso, para os adeptos e defensores dessa visão diminuta da
humanidade, ensinar e aprender limita-se a transmitir e memorizar
fatos – sem crítica, sem questionamentos, sem provocações. Se
pudessem, se desfariam de todos os professores e fabricariam o
“mestre novo”: a máquina que conhece seu lugar
(como retransmissor duma tradição construída para silenciar o
lugar do ser humano) e sabe colocar o estudante em seu próprio lugar
(como humano submisso à hierarquia dos que sabem mais do que ele e
do que seus professores – a hierarquia autora do próprio ESP).
Assim,
a deseducação proposta pelo ESP é aquela levada a cabo por um
professor que não provoca. O aluno que o ESP quer produzir é aquele
que não discorda (na verdade, só discorda se o professor for uma
dessas criaturas etéreas que os apoiadores do projeto chamam de
“esquerdista”
ou “comunista” – e que seria todo aquele que discorda da
visão de mundo proposta pelo ESP). Tudo segue o rito estabelecido na
cartilha da hierarquia autoritária: uns falam, outros ouvem; uns
mandam, outros obedecem!
Essa
é a “solução” proposta pela ideologia do Escola Sem Partido! A
“solução final” para a educação brasileira!
Você
se refere a um “filósofo” que apoia o movimento. Como um
“filósofo” pode apoiar o não questionamento? Ninguém que apoie
a criminalização da expressão de ideias e conceitos pode ser
tomado como “filósofo”. É, no máximo, uma fraude com um bom
trabalho de marketing! Ele pode ser aplaudido por sua audiência,
admiradora dos termos sofisticados e das assombrosas referências que
faz aos “comunistas” (termo genérico aplicado a qualquer
um que discorde de sua visão de mundo) ou, quando tenta ser mais
elegante, aos “socialistas fabianos”, mas o que é sua
mensagem além de um apelo ao autoritarismo ideológico?!
A
propósito, uma maneira de selecionar o que escutamos – o que, em
si, é uma atividade intelectual – é justamente sabermos quem nos
fala. Quais são as ideias que essa pessoa defende? O que essa pessoa
faz? Como ela ganha a vida? Por que ela diz o que diz? Quem apoia o
que essa pessoa faz? Quem ela mesma apoia?
Por
exemplo, não é curioso que os autores e defensores desses projetos
de lei patrocinados pelo ESP – incluindo o citado “filósofo” –
não incluam professores? Como essas leis se dirigem a professores da
Educação Básica, seria razoável esperar que entre seus autores e
apoiadores houvesse professores da Educação Básica (as pessoas que
têm formação, conhecem a vida escolar, a atuam na sala de aula
regular). Mas, não há. E o “filósofo” que você cita não é
professor do ensino regular – nem no Brasil, nem onde vive!
Posso
deixar claro o que penso que você deve saber a meu respeito:
Sou
um professor. Ensino na Educação Básica e Superior. Não estou
ligado a políticos. Não trabalho para partidos políticos ou
candidatos políticos. Mas, obviamente, abraço um conjunto de ideias
filosóficas que moldam minha visão política.
Acredito
na liberdade de opinião e de expressão de opinião, e a defendo em
minha prática. Minhas crenças filosóficas, religiosas e políticas,
e minhas perspectivas teóricas, não são impostas a meus alunos e
alunas como a única opção aceitável; mas elas, obviamente, estão
presentes em tudo o que faço. E isso ocorre porque sou um ser
humano, e não uma máquina. Por mais que queira e me esforce para
manter um ambiente de abertura na sala de aula, ainda sou um
indivíduo – ou, se preferir, um “sujeito histórico” –, o
que implica que estou condicionado pelo que conheço e experiencio do
e no mundo. E é exatamente por isso que considero a exigência duma
suposta “neutralidade” como uma aberração irracional.
Nunca
neguei que, de fato, houvesse professores que faziam apologias
partidárias em sala de aula. Há professores que o fazem. Há
professores que impõem sua compreensão filosófica como a única
aceitável, correta, certa. Mas esses professores são uma minoria. E
os que o fazem, são partidários das mais diferentes visões
políticas; coletivamente, (possivelmente) sofrem de uma formação deficitária, e,
individualmente, de um deficit ético. O problema na formação
desses professores é o mesmo presente nas propostas do ESP: a visão
da educação como um instituto autoritário, no qual o professor é
um (re)transmissor e o estudante é um receptor.
Contudo,
reconhecer que haja professores que “imponham” uma única visão
da realidade social a seus alunos não é equivalente a dizer que
esses estudantes sejam “manipulados”. Eles, em sua maioria, não
o são. E não o são porque pessoas psicologicamente saudáveis não
são “manipuláveis” como marionetes. Os estudantes não chegam à
escola como tábulas rasas. Eles conseguem compreender o mundo ao seu
redor. A eles podem faltar conceitos sofisticados e um conhecimento
da “gramática teórica”, mas, ainda assim, são capazes de
legitimar ou deslegitimar discursos. Negar isso, dizendo que os
estudantes são “manipulados” pelos professores, é negar sua
humanidade e sua capacidade de autonomia.
Então,
se quer uma sugestão minha para lidar com as questões levantadas
pelo ESP, talvez devêssemos começar por fazer um pacto – os
professores, os pais, a escola, as autoridades educacionais, o ESP, o
Poder Legislativo etc – pela autonomia do estudante. Os estudantes
não são ratos de laboratório; são seres humanos e, assim, podem
entender muito mais do que os legisladores e seus apoiadores
conseguem imaginar. E nós, professores, já sabemos disso há muito
tempo. Já está mais do que na hora de pôr o que sabemos sobre
aprendizagem, sobre o desenvolvimento cognitivo de crianças e
adolescentes em nossa própria prática. Sejamos plenamente honestos
com nossos estudantes: ESP, confesse aos jovens estudantes suas
intenções autoritárias! Professores “manipuladores”, confessem
aos seus alunos de onde saíram suas visões de mundo!... Verdadeiros
professores: façamos nosso trabalho – é um direito de nossos
estudantes!
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