Gibson da Costa
Escolho
não participar das disputas medíocres que emergiram na grande mídia
e nas redes sociais sobre as propostas da BNCC – a Base Nacional
Comum Curricular –, especialmente no que concerne às minhas áreas
de ensino na Educação Básica. Contudo, como um professor veterano
– diferentemente dos “especialistas” que nunca puseram um pé
na sala de aula como professores da Educação Básica –, gostaria
de fazer algumas observações pessoais:
Enquanto
uma padronização curricular nacional seja, até certo ponto,
desejável, a mesma não é suficiente para resolver os problemas
enfrentados na Educação Básica brasileira. Mais uma vez, parece
que não se consegue sair das velhas disputas sobre “o que
ensinar”, quando o desafio, na vida real da sala de aula, é muito
mais complexo do que isso.
Mais
do que sugerir a inclusão ou exclusão de temas nos conteúdos
curriculares, o que precisamos é pensar nos atores principais do
processo educativo formal: os/as estudantes. E pensar nesses atores
significa considerar seus próprios interesses no que tange à sua
formação; significa conceder-lhes um certo grau de autonomia, de
acordo com sua capacidade cognitiva, para que escolham, dentre certas
opções, o que querem aprender.
Ora,
o problema é que a educação ainda é pensada a partir de
perspectivas hierárquicas, corporativistas e autoritárias – desde
a educação infantil até a superior. Os próprios professores são
treinados para atuar nesse molde, tendo muita dificuldade de enxergar
seu fazer fora dum eixo vertical de cima para baixo. Isso se
explicita na própria formação docente, por exemplo (os professores
não são formados para ensinar em “áreas”, mas em “componentes”
individuais), e no modus operandi da escola.
Sempre
fico muito perturbado com a forma como tão facilmente as ideias
atreladas ao currículo são dissociadas da forma como as relações
são construídas na escola. Pare e pense, por exemplo, no que muitos
de nós – se não a maioria – fazemos enquanto ensinamos sobre
autoritarismo, por exemplo, nas (talvez equivocadamente) chamadas
Ciências Humanas. Tratamos sobre questões referentes à liberdade
de expressão e censura, democracia e ditadura etc, num ambiente cuja
arquitetura nos torna [os professores, isto é] o centro do processo
– afinal os assentos dos estudantes se dirigem a nós, e espera-se
que todos eles olhem para nossa direção, como evidência de sua
submissão à nossa autoridade –; num ambiente no qual, muitas
vezes, a discordância e o inconformismo são interpretados, por nós,
como sinônimo de “desrespeito”; num ambiente no qual a fala
autoritária do professor é vista como ensino, mas o questionamento
do estudante não é visto como aprendizado; um ambiente no qual o
estudante é obrigado a “estudar” tudo o que os legisladores e
“especialistas” lhes impuseram, independentemente de seus
interesses; num ambiente no qual os resultados que realmente importam
são expressos em notas alcançadas numa prova.
Esses
são pontos que deveriam ser discutidos em qualquer tentativa de
reforma curricular – considerando que “currículo” seja muito
mais do que apenas “conteúdos”.
Sim,
obviamente sei que minhas perspectivas e expectativas resultam de
minha formação numa cultura escolar estranha àquela experienciada
pela maioria de meus colegas e concidadãos brasileiros. Mas é
justamente minha experiência pessoal, tanto como estudante quanto
como professor, que me faz crer e confiar firmemente no papel da
autonomia na educação. Há algo de deficiente nas expectativas do
sistema escolar quando o estudante é controlado durante toda a sua
vida e, repentinamente – se e quando tiver a oportunidade de
alcançar a Educação Superior –, tem de encarar escolhas por si
só (supondo que, de fato, as faça); ou tem de fazê-las em sua vida
profissional ou mesmo emotiva. Como nunca pôde escolher nada de
impactante em sua vida, como os componentes que estudaria na escola, por
exemplo, como pode ter desenvolvido maturidade suficiente para lidar
com as escolhas da vida adulta?
Todos
esperamos que os jovens e adultos sejam capazes de articular seus
pensamentos de forma inteligível, mas como o poderiam fazer se
passaram a infância e a adolescência sendo censurados inclusive por
aqueles que deveriam tê-los ajudado a desenvolver suas habilidades
discursivas? Como poderiam ser adultos autoconfiantes quando passaram
sua infância e adolescência sendo tratados como incapazes e
subalternos?… Você pensa que a escola não faz isso com os
estudantes? Pois é exatamente isso que faz quando não reconhece seu
direito à autonomia!
Então,
querem uma reforma curricular? Comecem por dar responsabilidades aos
estudantes quanto à sua própria formação, de acordo com suas
capacidades, além de reconhecer seu direito à criatividade, ao
erro, à tentativa… Diminuam os componentes curriculares
obrigatórios na Educação Básica; criem componentes optativos;
mudem a forma de organização física das salas de aula; acabem com
a absurda indústria da metrificação da aprendizagem; formem
professores que possam atuar em áreas de saber e não apenas em
componentes isolados, que sejam também autônomos, ao mesmo tempo em
que tenham competência para colaborar.
Obviamente,
a melhora nas condições de trabalho (inclusive de pagamentos e
benefícios) dos professores é também importante, mas a experiência
demonstra que isso não é suficiente. Assim como não são as
decisões burocráticas acerca do currículo. Melhorar as condições
e os resultados da educação escolar exige ações muito mais
amplas!
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