Querida
Ana,
Você levanta alguns questionamentos interessantes sobre o papel que
desempenhamos na sala da aula e, especificamente, sobre nosso papel
enquanto professores de componentes curriculares específicos.
Gostaria, contudo, de me deter um pouco sobre o ensino linguístico e
literário na escola, já que ambos partilhamos dessa experiência.
Você já parou para refletir sobre suas próprias experiências e
habilidades linguísticas? Por exemplo, como foi sua experiência
estudando português ou inglês na escola e na educação superior?
Você já teve a oportunidade de experienciar a língua – seja o
português ou o inglês – num ambiente cultural diferente do seu? E
qual o seu conhecimento sobre os processos cognitivos que se efetuam
para que aprendamos uma língua, por exemplo? Penso que quando
trabalhamos com o ensino de línguas, incluindo línguas
estrangeiras, refletir sobre nossas próprias experiências pode
abrir o caminho para que reflitamos sobre as experiências dos
estudantes aos quais ensinamos.
No que tange ao português, uma das possíveis razões que poderíamos
apontar para que o ensinemos na escola é, simplesmente, o fato de
que esse é um direito dos estudantes. E, em minha opinião, esse
direito se refere não apenas a aprender a chamada norma-padrão
da língua (que muitos reduzem à perspectiva que abraçam de
“gramática”) na escola, mas a compreender e apreciar, também, o
papel da variação linguística em nossa vida social. É
importantíssimo lembrar que cada estudante – na realidade, cada um
de nós – pertence a várias comunidades linguísticas
simultaneamente, ao mesmo tempo em que possui um repertório
linguístico unicamente seu (aquilo que chamamos de “idioleto”).
Assim, por exemplo, meu uso linguístico reflete minha herança
cultural, meu ambiente social e, principalmente, meu mundo interior:
i.e., se você acompanhar minha fala e minha escrita, perceberá que
a maneira como faço uso da língua tem características próprias,
distintas daquelas de outras pessoas; e o mesmo ocorre com você
mesma e com aqueles a quem ensina.
Todas as vezes que converso com um estudante de Letras ou com um
professor de língua portuguesa, questionando-o sobre as razões que
o levaram a se engajar na área, ouço respostas semelhantes.
Geralmente, a razão apontada é seu amor à Literatura. A maioria
daqueles com os quais converso (sei que não é o caso de todos os
outros) aponta seu amor pela leitura como a principal razão por
haver escolhido estudar e ensinar português. Ser formado em Letras,
assim, significaria se engajar com Literatura – o que não deixa de
ser uma redução exagerada tanto do papel do professor de língua
quanto do próprio campo de estudo.
O problema com essa visão do “amor à Literatura”, entretanto, é
que, na maioria das escolas brasileiras, o papel desempenhado pelo
estudo literário é deveras reduzido. Some-se a isso o fato já
conhecido de a maioria das escolas não possuir uma biblioteca bem
suprida de livros literários básicos. Logo, alguém que resolve se
tornar professor de língua portuguesa, por conta desse suposto amor
à Literatura, terá oportunidades muito reduzidas para se dedicar ao
ensino de Literatura nas escolas da educação básica – o que é
uma infelicidade para qualquer profissional da área.
Em se tratando do ensino de Literatura, entretanto, há outros
obstáculos a serem considerados e que podem nos ajudar a refletir
sobre seu ensino-aprendizagem na escola. O principal deles diz
respeito à própria “natureza” da escrita literária. Os autores
dos textos literários não os compuseram para que os mesmos fossem
estudados na escola. Então, por que os alunos são forçados a
estudá-los nas aulas de português ou Literatura, sem que
consideremos sua (falta de) habilidade em lidar com textos
literários, especialmente os clássicos? Por que esperar que
estudantes – muitas vezes advindos dum background
sociocultural no qual a leitura não se faz presente – do Ensino
Médio, por exemplo, consigam lidar com textos de Machado de Assis
(escritor por cujas obras sou apaixonado), quando sequer tiveram
contato com textos literários de sua própria época previamente?
Em muitos países, uma alternativa é a apresentação da literatura
clássica de forma simplificada, nas séries fundamentais, para então
apresentar as composições originais mais tarde na escola. Isso pode
ser muito vantajoso em certos contextos. No Brasil, entretanto, o
ensino literário é ainda encarado de forma deveras tradicionalista
– o que dificulta o letramento literário da maioria dos estudantes
que, reconheçamos, não tem acesso aos livros. É só lembrar do que
ocorreu no ano passado, com a polêmica sobre o projeto de Patrícia
Secco oferecer uma versão “simplificada” de “O Alienista”
de Machado de Assis. Seus críticos, que provavelmente vivem numa
realidade sociocultural bem distinta daquela da maioria das crianças
e adolescentes brasileiros, foram impiedosos em muitos de seus
comentários nos meios de comunicação. Para eles, só haveria uma
porta para o universo da Literatura: o texto tal como foi composto –
independentemente de quantos seriam deixados de fora!
Aquela questão pode nos fazer pensar sobre inúmeros temas, que têm
uma relação com a forma como vemos o problema: nossa visão de
humanidade, nossa visão política, nossa visão do processo de
ensino-aprendizagem, nossa visão do papel da escola, nossa visão
dos papeis desempenhados pela escrita e pela Literatura, nossa visão
linguística, e tantos outros pontos. Quando ensinamos, seja lá qual
for o componente curricular, carregamos conosco um universo inteiro
de conceitos e preconceitos que terão um impacto sobre a forma como
desempenhamos nosso papel pedagógico. Assim, o que fazemos e o que
deixamos de fazer, a maneira como nos relacionamos com estudantes e
outros professores, a forma como ensinamos e aquelas formas que
rejeitamos utilizar em nosso ensino, etc, têm uma origem nos
conceitos e preconceitos que abraçamos.
Seja como for, por mais que a visão que abraço seja, na prática,
rejeitada pela maioria de meus colegas, me oponho abertamente aos
elementos residuais de elitismo ossificado em nossos sistemas de
ensino e testagem. E isso se aplica não apenas ao ensino
linguístico e literário, como a todos os demais componentes
curriculares de nossas escolas.
Agradeço por seus comentários e participação no fórum.
Grande abraço!
Gibson
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