sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Da docência das humanidades, especialmente da História, na Educação Básica


Sempre senti um desconforto em definir minha atuação num campo intelectual específico. Isso porque as humanidades – isto é, aquele grande campo no qual se encontram as áreas mais específicas de minhas formações e interesses intelectuais (a Teologia, a História, a Filosofia, a Ciência Política, a Economia, as Artes e os Estudos Linguísticos) – estão tão entrelaçadas a ponto de tornar a construção de muros isoladores entre suas diferentes áreas uma impossibilidade, ao menos em minha compreensão pessoal.


Esse entrelaçamento cria o ambiente para minha renúncia ao mito duma formação e atuação isolacionista daqueles que pesquisam e ensinam as chamadas “ciências humanas/sociais”; o tipo de atitude isolacionista proposto pelos ativistas de grupos corporativistas, que anseiam por uma forma de privilégio profissional deveras mítico para um adepto da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade como eu.


Pensando sobre o ensino de História na escola, não posso deixar de afirmar a necessidade que o/a professor/a tem de estar familiarizado/a com conceitos indispensáveis à construção duma compreensão social. Conceitos esses advindos de muitas áreas distintas, como a Sociologia, a Antropologia, a Economia, a Filosofia etc, e que são utilizados em nossos estudos históricos e, consequentemente, em nosso ensino da história escolar – aquela imposição absurda, que a sociedade faz aos alunos da Educação Básica, de informações históricas, em aulas com pouca duração, daquilo que os professores demoraram pelo menos quatro anos para aprender superficialmente de forma mais concentrada. Ensinar História a estudantes da Educação Básica pode tornar-se, assim, um desafio enorme para qualquer professor/a que leve seu trabalho à sério.


Assim, vejo a necessidade de os professores/as de História, mas não apenas de História, serem incentivados a ampliarem sua própria compreensão teórica para que possam levar seus alunos a ampliarem seu repertório de questionamentos históricos. Isso significa, dentre tantas outras coisas, que, por exemplo, devamos evitar a aceitação de respostas óbvias e a imposição de visões políticas unilaterais em aula – tornando nossa posição de privilégio em sala uma espécie de palanque político, como é tão comum em aulas de História (ou em todas as aulas escolares).


Dessa forma, ensinar sobre o capitalismo, por exemplo, só deixará de ser uma apologia à nossa própria visão de mundo (seja ela pró ou anticapitalista), se nós mesmos nos esforçarmos para compreender a historicidade do capitalismo – e o mesmo é válido no que tange ao socialismo.


Por isso, vejo meu papel pedagógico como aquele de um provocador ou mediador na experiência de aprendizado do/a estudante. Antes de ser aquele que possui as respostas para todas as suas questões, prefiro ser aquele que os provocará a ponto de buscarem suas próprias respostas – mesmo que essas impliquem conclusões às quais eu mesmo não chegaria. Isso, obviamente exige um grande esforço de aprendizagem do lado do próprio docente.


Não poderíamos servir como mediadores no aprendizado das causas que levaram à emergência da al-Qa'ida contra os Estados Unidos, por exemplo, se nós mesmos não estivermos familiarizados com o pensamento do jihadismo islâmico e suas diferenças para com o pensamento islâmico ortodoxo. Do contrário, correríamos o risco de classificar ou aceitar a identificação por parte dos alunos do Islã com o terrorismo, como se todo muçulmano fosse necessariamente um terrorista em potencial (e mesmo a utilização dos termos “terrorismo” e “terrorista” dependeriam duma compreensão teórica para um uso informado).


O mesmo pode ocorrer quando tratamos sobre temas que estão mais imediatamente entrelaçados com nossas experiências pessoais, envolvendo nossa compreensões morais. Um exemplo recorrente no Brasil é a forma como muitos professores, e alguns materiais didáticos, por exemplo, lidam com a história mais recente do país. O exemplo mais imediato que me vem à mente é o refrão repetido de acusação ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como uma forma de agente do “neoliberalismo”, enquanto o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva é frequentemente pintado como uma espécie de herói nacional. Já me perguntei o que um/a professor/a responderia se lhe pedisse uma definição teórica do “neoliberalismo – a maioria dos que já ouvi oferecendo tal definição, o identificaram (o “neoliberalismo”, isto é) com a privatização, e só. Outros professores conseguem impor a seus alunos uma visão forçosamente classista da história, como se apenas essa compreensão fosse suficiente para lidar com a complexidade do universo social.


Essa simplificação exagerada da realidade, que, em minha opinião, é motivada pela antiquada e paternalista visão do/a professor/a como um ator/atriz social messiânico/a, só pode ser vencida pela ampliação dos horizontes intelectuais daquele/a que tem a sala de aula como seu campo de atuação profissional. Um/a professor/a de História deve ser capaz de questionar a realidade social de forma intelectualmente mais sofisticada do que aquele grupo de amigos sem a mesma formação acadêmica na mesa de bar. Ele/a deve ser capaz de questionar suas próprias convicções, de avaliar seu uso semântico, de encontrar paralelos no universo sociocultural e etário de seus alunos, para que, assim, possa servir de mediador. Essa, ao menos, tem sido minha experiência, mesmo que meus colegas nem sempre concordem comigo.


Manter nosso repertório teórico atualizado é um desafio por nossa carga conteudística ser elevada. Enquanto um/a professor/a do Ensino Superior frequentemente ocupa-se de campos muito específicos duma grande disciplina acadêmica, seu/sua colega da Educação Básica é responsável em lidar com o todo da disciplina que leciona exigido para aquele nível educacional. Assim, um professor de História na Educação Básica que lecione em todas as séries do Ensino Fundamental II ou do Ensino Médio, lida com a história das origens dos seres humanos até o hoje, nos níveis global, nacional, regional e local, e sobre questões referentes a grupos étnicos específicos, por exemplo – independentemente de sua formação e de seus interesses intelectuais. Isso exige um esforço intelectual provavelmente inimaginável para a maioria dos/as professores/as de História do Ensino Superior. Mas como esse foi um desafio que supostamente aceitamos no decorrer de nossa formação, temos de fazer o melhor que pudermos para vencê-lo; e esse melhor exige, no mundo perfeito, um esforço para nos mantermos atualizados no que tange tanto à nossa área disciplinar quanto às questões pedagógicas propriamente ditas.


Essa exigência que é feita dos/as professores/as da Educação Básica deveria, aliás, ser suficiente para eliminar o preconceito tido por muitos dos/as docentes do Ensino Superior contra o papel do/a docente da Educação Básica. Em minha experiência, ser um bom professor generalista, o que poderia se esperar dos/as professores/as da escola, exige um esforço muito maior (em todos os campos possíveis da vida pessoal) do que aquele que é normalmente exigido dum/a professor/a que atua numa área especializada do Ensino Superior. Os desafios que enfrentamos incluem não apenas um conhecimento ao menos panorâmico de todos os conteúdos tratados no nível escolar que ensinamos (se é que isso é realmente possível), como também um instrumental necessário para ajudar nossos alunos a se engajarem com assuntos que geralmente lhes parecem distantes e desinteressantes.


É por isso que não posso definir meu campo de atuação pedagógica ou intelectual numa área específica das humanidades. Para mim, elas estão inerentemente entrelaçadas, devendo viver num jardim de convivência comum. Para ensinar História, por exemplo, preciso de conceitos advindos de outras áreas, preciso estar atento ao mundo de hoje, ao mesmo tempo em que devo ser cuidadoso para não cair nas armadilhas do anacronismo. Isso não é nem um pouco fácil, mas é o que torna as chamadas “Ciências Humanas e Suas Tecnologias” fascinante para mim.

Gibson

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